Ano: IV Número: 47
ISSN: 1983-005X
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Lição de modernidade
Gilberto Paim

Livro: Lucie Rie, Modernist Potter Autor(a): Emannuel Cooper Editora: Yale University Press

Postado: 20/10/2012

   

Lucie Rie (1902-1995), ceramista inglesa de origem austríaca, mereceu recentemente primorosa biografia escrita pelo também ceramista Emmanuel Cooper, editor da Ceramic Review durante várias décadas.

O livro revela uma artista de excelente formação, incessantemente curiosa sobre as possibilidades da cerâmica, criadora de linguagem plástica única e inquestionavelmente moderna.

Emmanuel Cooper evidencia a influência de ideias conflitantes do modernismo vienense na obra de Lucie Rie, exuberante em sua sobriedade, se podemos dizer assim.

Ela elaborou a própria linguagem tanto a partir das severas restrições anti-decorativas de Adolf Loos, de quem foi aluna no ginásio, quanto da refinada vertente ornamental de Josef Hoffmann, seu principal orientador na Kunstgewerbeschule (hoje Universidade de Artes Aplicadas), onde se graduou em cerâmica.

Quando quis prosseguir os estudos na Bauhaus, seus pais, prósperos burgueses da comunidade judaica dissuadiram-na alegando que já havia estudado bastante. Fica a indagação sobre a influência que a escola alemã teria sobre sua obra.

Em 1938, quando fugiu da ocupação nazista da Áustria, Rie já era uma ceramista de renome, tendo participado de importantes exposições internacionais de arte e design, algumas promovidas por Josef Hoffmann. Embora a recepção inicial a seu trabalho na Inglaterra tenha sido fria, preferiu se estabelecer em Londres, enquanto o marido optou por imigrar para os Estados Unidos, acelerando a separação.

Durante mais de cinquenta anos viveu e trabalhou em uma casinha em Albion Mews, impasse ao norte do Hyde Park, local em que conseguiu reinstalar a mobília originalmente desenhada pelo amigo e arquiteto Ernst Plischke para o apartamento de Viena, manifestando adesão definitiva à simplicidade modernista. Seu ateliê pode ser visitado no Victoria and Albert Museum, de Londres, onde foi parcialmente montado há alguns anos.

Embora a cerâmica moderna inglesa tenha sido dominada durante várias décadas pelo orientalismo de Bernard Leach, com sua ênfase nas cores tradicionais dos esmaltes chineses e japoneses, Rie foi bastante persistente para impor o próprio estilo mais experimental, porém elegante. Suas cores e texturas ricas parecem perfeitamente integradas às formas, descartando assim a impressão de decoração acrescentada, supérflua.

Apesar de suas diferenças estéticas, Rie e Leach tornaram-se grandes amigos e admiradores recíprocos. Rie estabeleceu uma ligação ainda mais forte com Hans Coper, outro grande expoente da cerâmica do século XX, que começou como seu assistente e ao lado de quem expôs inúmeras vezes.

O biógrafo nos revela uma professora exigente, frequentemente ríspida com seus alunos da Camberwell School of Arts, onde lecionou por alguns anos; uma profissional desconfiada das associações de artesãos amadores; breve em seus depoimentos escritos, porém, plenamente consciente do valor da própria obra, sem se importar com a fama de vender caro.

Nas duas últimas décadas de vida, após retrospectivas em museus como Boijmans Van Beuningen e Victoria and Albert, Rie ficava, porém, constrangida de informar aos estudantes, que a visitavam, os preços elevados que suas peças atingiam em galerias ou leilões.

O autor narra com riqueza de detalhes o interesse crescente que as criações de Rie encontraram na Inglaterra por parte de lojistas, galeristas, jornalistas, arquitetos, colecionadores, além de curadores e diretores de fundações e museus, revelando uma rede exemplar de apoio ao talento nas artes aplicadas, provavelmente uma herança remota dos ideais do Movimento de Artes e Ofícios.

A partir de lá, sua obra conquistou apreciadores fiéis na Holanda, Suécia e Estados Unidos. Encantado pelas cerâmicas de Rie, o estilista Issey Miyake passou a promovê-las regularmente no Japão. Ela declinou, porém, vários convites para expor em seu país natal.

Com bastante ousadia Rie inventou ou reinventou - considerando a longevidade da arte da cerâmica - alguns procedimentos técnicos de risco como a esmaltação com pincel nas peças ainda cruas, e a mistura de diferentes óxidos minerais às argilas, que tendem a baixar de modo desigual seu ponto de fusão.

Sempre incluía testes de argilas ou vidrados em suas queimas em forno elétrico, como revelam seus cadernos de anotações. Seu repertório de formas e tratamentos de superfície foi muito rico e diversificado, sua capacidade de trabalho prodigiosa. Em 1989, aos 87 anos, surpreendeu com uma exposição individual de peças exclusivamente em tons de branco na Galeria Besson, especializada em cerâmica, em Londres. 

Certa vez, quando sua sobrinha lhe perguntou por que não delegava a tarefa por vezes exaustiva de modelar todas as peças, respondeu sem hesitação: “porque não seriam minhas!” - princípio que, infelizmente, parece ter sido abandonado por tantos ceramistas atuais.

A qualidade extraordinária da arte de Rie, reconhecida muito além do círculo restrito dos apreciadores da cerâmica, foi alcançada graças a seu grande talento e engajamento radical no processo criativo.

 

Gilberto Paim é ceramista e escritor.

 


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