Ano: V Número: 51
ISSN: 1983-005X
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Resposta à resenha de Pedro Arantes
Gui Bonsiepe

Livro: Design, cultura e sociedade Autor(a): Gui Bonsiepe Editora: Blucher

Postado: 04/07/2013

   

Prezado Pedro Arantes,

Agradeço pela resenha crítica e substanciosa do livro (leia aqui a resenha: http://www.agitprop.com.br/index.cfm?pag=leitura_det&id=171&Titulo=leitura). Em geral, não respondo às críticas dos meus textos, porém nesse caso faço uma exceção, pois os argumentos levantados merecem uma resposta.

Se entendo bem, sua crítica considera como um dos pontos mais débeis do livro a falta da resposta à pergunta de onde partiria uma reforma do design – em vez de reforma eu diria não-abandono das ruínas dispersas do projeto moderno.

Longe de mim pretender uma reforma do design na época do capitalismo global. Meu objetivo era – e é – muito mais modesto: contribuir para uma melhor profissionalização dos designers industriais e gráficos, pois, ao final das contas, o designer é um profissional que deve solucionar problemas na sociedade atual; e isso sem esconder as limitações da ação num sistema altamente complexo com interesses antagônicos de alguns dos diferentes atores mencionados na resenha: um estado esclarecido, uma esfera pública, consumidores organizados ou o neoproletariado digital, o que deixa prever que não será a profissão dos designers supostamente demiúrgicos e até megalomaníacos que salvará o mundo.

Minha perspectiva não incluía a esfera da produção e circulação enfatizada por sua crítica. É um aspecto de análise para outro livro. Porém o juízo do caráter extemporâneo das minhas observações sobre a mundialização do capital e outros aspectos que condicionam o design na atualidade não é justificado; pois, no último capítulo sobre Inovação, Design e Globalização, menciono explicitamente o Consenso de Washington e os interesses por trás desse ‘consenso’ que desejam manter a atual divisão de trabalho atribuindo aos países periféricos a função de exportador de commodities, vale dizer produtos sem componente projetual.

Não é a primeira vez que se cita Argan, que tinha – como é sabido – uma postura crítica frente à indústria capitalista, caracterizando o design de produtos como contaminado pelo afã do lucro e condenado a ser partícipe na continuação de um sistema que não tem espaços emancipatórios.

É uma postura do extremismo do ‘Tudo ou Nada’ – compreensível para um crítico fora do sistema industrial. Argan eleva a Arte como único espaço de atuação crítica projetual com potencial de emancipação, e isso em forma apodíctica com a qual, como designer, não concordo. Em outras palavras: considero a postura de Argan não pertinente, pois de antemão condena com uma sentença gratuita qualquer intento de atuar dentro do sistema industrial atual.

É expressão de uma valorização cultural pessoal que pode merecer respeito, porém da qual não compartilho. Concordo, pelo contrário, com uma postura crítica, porém uma consciência crítica que chega com mãos vazias não incomoda os defensores do status quo. Só uma letra difere a 'd-enúncia' da 'r-enúncia'. Só uma linha muito fina separa as duas maneiras de enfrentar a realidade. No livro advogo por uma não-renúncia projetual, pois caso contrário defenderia uma capitulação frente à realidade como ela é.

Com relação ao suposto ponto cego de minhas reflexões sobre o projeto moderno, a conclusão de que retiro o design do lugar que ocupa no aparato econômico não leva em conta que um objeto da minha crítica é justamente o branding que tende a instrumentalizar o design empurrando-o para a dimensão simbólica e assim ocultando a materialidade da produção.

A história da Apple do Steve Jobs que levou o design ao centro da política empresarial permite uma leitura diferente. Pergunto-me se podemos desqualificar todos os produtos da Apple como gadgets. Quais seriam as não-geringonças, supostamente com uma função 'séria'? Existe uma ligação intrínseca entre as condições inaceitáveis de produção nas fábricas na Ásia e o design desses mesmos produtos? Podemos responsabilizar o design dos produtos da Apple pelas condições de exploração nas fábricas desses mesmos produtos? Parece-me uma interpretação sem as devidas diferenciações, quase com um toque maniqueísta.

Em vez de acusar os usuários dos i-phones como fetichistas e vítimas do poder sedutor do design, seria talvez mais desafiador tratar de explicar e compreender a fascinação dos compradores e usuários por esses produtos – uma tarefa que requer pesquisa empírica e não um juízo generalizante. São verdadeiramente venenosas todas as maçãs simplesmente pelo fato de serem sedutoras? Uma visão tão apocalíptica bloqueia a compreensão de uma realidade complexa e contraditória. O fato de que a língua pode ser usada para mentir não é um argumento para abdicar do uso da língua. Precisa-se fazer uso da língua para desmascarar mentiras.

O fato de que cada produto arrasta como sombra suas condições de produção já foi constatado por Walter Benjamin (não existe documento de cultura que não seja ao mesmo tempo um documento da barbárie). Porém, isso desqualifica qualquer produto de antemão? Então o que fazer? Não sobrecarregaríamos o design se esperássemos superar a partir do design – e enfatizo a partir do design – as contradições internas do sistema atual de produção, distribuição e consumo? Existem no porão pés-de-cabra mais fortes que o design para quebrar a estrutura da sociedade tardo-capitalista.

Como é sabido, o design está intimamente imbricado com a estética da mercadoria – um fato implacavelmente criticado já no começo dos anos 1970, o que levou a um efeito de paralisia: "No ambiente capitalista o design cumpre uma função comparável à função da Cruz Vermelha na guerra. Cura algumas poucas – nunca as mais graves – feridas provocadas pelo capitalismo. Pratica cosmética e prolonga o capitalismo como a Cruz Vermelha prolonga a guerra, enquanto tem um efeito embelezedor e mantém em alto a moral (1)". Pelo menos o crítico é generoso o suficiente para conceder ao design uma função curadora.

Para superar os impasses e contradições do design, você procura uma solução – não a solução exclusiva – na aproximação entre projetistas e produtores concretos nas fábricas, similar às tentativas do design participativo nos anos 70.

Na arquitetura foram feitos experimentos desse tipo para incluir os moradores no processo projetual de planejamento e na construção de casas e bairros. Christopher Alexander formulou: "Em outras palavras, não somente deveriam ser incluídos os moradores nos edifícios construídos para eles, mais eles deveriam ajudar efetivamente no design desses edifícios (2)".

Ainda que bem intencionados, as tentativas, não deram certo. Lamentavelmente. No campo da arquitetura correu-se o risco de uma desprofissionalização. Numa fase se fomentou o amadorismo, em outra fase a  interdisciplinaridade. Posteriormente foi abandonado. Sobreviveu na forma do advocacy planning (3).

Tenho dúvidas se o design participativo funciona no caso de produtos industriais de maior complexidade – e isso sem levar em consideração as relações sociais de produção pouco propícias para esse tipo de experimento. Porém, o sistema não é tão hermético. Existem interstícios que permitem intervir com práticas não- reprodutoras do status quo.

 

Cordiais saudações,

Gui Bonsiepe

Florianópolis, 22 de maio 2013.

 


Notas

(1) Haug, Wolfgang Fritz."Antwort auf eine Umfrage des Internationalen Design-Zentrums". In: Umwelt wird in Frage gestellt, Internationales Design-Zentrums Berlin (org.). Berlim: Internationales Designzentrum, 1971.

(2) "In other words, not only that they should be involved in the buildings that are for them but that they should actively help design them". C. Alexander na entrevista com M. Jacobson: The State of the Art in Design Methodology. In: DMG-Newsletter, Nr. 3, Vol. 5, 1971, p.4.

(3) Fezer, Jesko. Deprofessionalisierungstendenzen. Disko 24 (2011).


 


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