Ano: VI Número: 58
ISSN: 1983-005X
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Da arqueologia ao design
Márcia Pacito

Livro: Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material Autor(a): Daniel Miller Editora: Jorge Zahar

Postado: 28/08/2014

   

Lançado em 2013 pela editora Zahar, Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material de Daniel Miller é uma obra convidativa para leitores interessados nas reflexões desenvolvidas nas últimas décadas pelo arqueólogo e antropólogo britânico sobre as relações estabelecidas entre sujeitos e objetos. Professor do departamento de antropologia da University College London (UCL), autor e organizador de uma extensa lista de artigos e livros voltados para o tema da cultura material, Miller tem buscado, a partir de múltiplos enfoques, investigar o lugar da materialidade e seus efeitos sociais no mundo contemporâneo em diversas obras (1).

Conjugando impressões advindas de pesquisas de campo etnográficas realizadas em numerosos países e estabelecendo aproximações com teóricos que já se debruçaram sobre o tema da cultura material, como Marcel Mauss, Mary Douglas, Marshall Sahlins, Alfred Gell e Bruno Latour, entre outros, Daniel Miller chama atenção para a necessidade de buscar interpretações menos dicotômicas acerca das interações travadas entre seres humanos e objetos.

Tradução do livro Stuff, lançado na Inglaterra em 2010, Trecos, troços e coisas é o segundo título do autor publicado no Brasil, lançado após mais de dez anos da obra Teoria das compras, editado pela Nobel (2002). Ao longo dos cinco capítulos que compõem o livro, o autor transita pelos universos da indumentária, das habitações e dos meios de comunicação em diferentes porções do globo a fim de sustentar como os objetos não podem ser encarados como meros reflexos ou representações de determinadas práticas sociais, mas como elementos mediadores e constituintes destas relações. Fruto de diferentes pesquisas empreendidas pelo autor nos últimos anos, os ensaios de Trecos, troços e coisas possuem coerência interna, mas podem também serem lidos de maneira autônoma sem prejuízo de compreensão para o leitor.

Logo no início do livro, Daniel Miller se autodenomina “extremista”, já que se propõe a equacionar particularismo e universalismo em seus estudos de casos com o objetivo de se distanciar de visões esquemáticas sobre determinados grupos sociais e suas relações com os “trecos” (2). Assim, impulsionado por este tipo de posicionamento analítico, Daniel Miller defende que o estudo da cultura material preocupado em localizar pontos de contato entre especificidade e generalidade, nos fornece dados capazes de problematizar estereótipos e idealizações.

Longe de fazer coro a um discurso primitivista e exotizante, no qual sociedades ditas tradicionais conservariam um certo “estado de pureza”  por, entre outros fatores, possuírem menos bens materiais, o antropólogo, ao contrário, defende que muitas destas sociedades desenvolveram noções extremamente complexas no que diz respeito ao consumo e à posse de objetos. Assim, para Miller, podemos verificar de forma mais ampla, sem perder de vista, contudo, as particularidades de cada contexto cultural, aspirações materialistas tanto em habitantes de Londres quanto em grupos aborígenes da Austrália (3). Nesse sentido, a cultura material enquanto campo interdisciplinar pode servir, de acordo com o autor, como uma espécie de guia que nos leva a compreender o papel que determinados artefatos desempenham em distintas realidades sociais, ou seja, o estudo dos objetos nos auxilia no processo de entendimento sobre os códigos sociais não só do “outro”, mas de nós mesmos.

Em “Por que a indumentária não é algo superficial” Daniel Miller toma como fio condutor de sua narrativa as observações sobre os múltiplos significados do vestuário para mulheres sem-teto em Trinidad, do sári, vestimenta feminina tradicional indiana e das práticas de consumo de roupas em Londres. Para além das descrições que o autor dispensa a estes três exemplos, as análises comparativas tecidas por Miller sobre o lugar da indumentária nestes espaços geográficos tão distintos recaem sobre a tese de que as roupas, tanto para caribenhas, indianas e inglesas, não atuam como meros aparatos simbólicos ou expressões artificiais para quem as veste, mas sim, operam de maneira decisiva na formação do “eu” destas pessoas. Para o autor, mais do que representar, as roupas constituem.

No capítulo seguinte, “Teoria das coisas”, Miller apresenta ao leitor um balanço acerca de autores que, desde o século XIX, incorporaram a discussão sobre dimensão material em suas obras. Da dialética de Hegel à concepção de materialismo de Marx, passando pelo estruturalismo de Lévi-Strauss até o conceito de “agência” mobilizado por Alfred Gell, Daniel Miller procura evidenciar as constantes transformações sofridas pela ideia de materialidade em diferentes vertentes intelectuais. O esforço em historicizar não só a conformação dos estudos da cultura material como também as interações com os “trecos” que nos cercam é um aspecto a ser destacado no livro de Miller. Ao privilegiar uma abordagem que identifica uma série de tensões e contradições que moldam nossas relações com as coisas, o antropólogo se distancia de uma visão naturalizadora da presença dos objetos em nossa dinâmica cotidiana.

Segundo o autor, quão maior é o silêncio e a invisibilidade dos itens materiais que nos circundam, maior é o seu poder de atuação. A esse curioso fenômeno Daniel Miller dá o nome de “humildade das coisas” (4). É justamente essa capacidade de se camuflar, ou seja, estar presente sem praticamente se revelar e, portanto, ser tomado como um produto natural e não histórico, que faz com que muitas vezes não questionemos o papel dos objetos em nosso dia-a-dia. Na linha do que sugere Miller, quando lançamos um olhar menos ingênuo sobre os “trecos”, somos conduzidos a uma trama de questões que nos possibilita pôr em xeque esta atemporalidade: quem os produziu? Para quem os produziu? Quais são os níveis de circulação e apropriação destes objetos?

Intitulado “Casas: teorias da acomodação”, o terceiro capítulo de Trecos, troços e coisas revela-se de grande interesse para arquitetos e designers. Ao longo deste ensaio, o pesquisador discute como, no plano da habitação, certos movimentos artísticos ligados ao Modernismo europeu do início do século XX também concentraram suas atenções para a construção de uma “arquitetura moderna” que atuaria de maneira pedagógica na composição do “homem moderno”.  Por meio de considerações sobre as habitações populares estatais no subúrbio londrino, Miller discorre como o ambiente doméstico planejado a partir de padrões ditados pelo Estado e por arquitetos pode ser visto como espaço de agenciamento social, na medida em que os habitantes se apropriavam destes lugares. A pesquisa desenvolvida por Miller sobre estes ambientes demonstra que, para além da alienação que este processo poderia causar aos moradores destas residências - as quais levavam mais em conta critérios estéticos preconizados por arquitetos e governantes em detrimento, muitas vezes, das necessidades reais dos moradores – os habitantes destas casas ressignificavam estes espaços, por meio da compra de novos móveis ou optando por uma pintura que destoasse do modelo estabelecido.

Em “Mídia: cultura imaterial e antropologia aplicada”, Daniel Miller investiga como certos recursos virtuais, como a troca de mensagens de textos entre jovens filipinos, e o uso constante da telefonia móvel como garantia de sobrevivência para parte significativa da população jamaicana afetada pela pobreza, possuem funções estratégicas na manutenção de laços afetivos e de redes de sociabilidade entre as pessoas. Já em “Questão de vida ou morte”, último capítulo de Trecos, troços e coisas, Miller se debruça sobre o lugar ocupado pelos objetos em experiências relacionadas ao nascimento e à morte. Particularmente no último caso, o autor nos descreve, a partir de entrevistas com famílias inglesas, de que maneira os objetos, interpretados como síntese de memórias de entes falecidos, são instrumentalizados, seja pela posse ou pelo despojamento, no processo de materialização do luto destas famílias.

Em linhas gerais, Trecos, troços e coisas apresenta ao leitor uma abordagem arejada sobre a relevância da cultura material para compreensão de nosso mundo social, além de fornecer suportes teórico-metodológicos válidos para diferentes campos de pesquisa. Articulando uma narrativa leve e descontraída a um percurso analítico denso, pautado por longa lista de obras e relatos de trabalhos de campo etnográficos, Daniel Miller elabora, ao longo de seus textos, diálogo afinado entre debates teóricos e suas multifacetadas manifestações no universo cotidiano de populações caribenhas, asiáticas e europeias. Do vestuário à habitação, do celular ao carro, a materialidade que nos ronda precisa ser desnaturalizada e compreendida à luz de sua historicidade. Ou como reitera Miller, já que não podemos escapar de nosso universo físico, que tal tentarmos entendê-lo?

 

Márcia Pacito é historiadora e atualmente mestranda em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP).

 

Notas

(1) Referências sobre as principais áreas de interesse de Daniel Miller e suas publicações podem ser consultadas no endereço eletrônico da University College London (UCL): http://www.ucl.ac.uk/anthropology/people/academic_staff/d_miller

(2) MILLER, Daniel. Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2013, pp. 7-20.

(3) Ibidem, pp. 11-12.

(4) Ibidem, pp. 78-79.

 

 


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