Ano: I Número: 3
ISSN: 1983-005X
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Uma outra fotografia
André Favilla

Livro: Geraldo de Barros: Sobras + Fotoformas Autor(a): Rubens Fernandes Junior (org.) Editora: Cosac Naify

Postado: 19/03/2008

   

Organizada por Rubens Fernandes Junior, a caixa Geraldo de Barros: Sobras + Fotoformas (Cosac Naify, 2006, 412 p.) reúne pela primeira vez a obra fotográfica produzida por Geraldo de Barros em dois períodos de sua vida – períodos separados, curiosamente, em quase cinqüenta anos. Sobras, o primeiro volume da caixa patrocinada pela McKinsey&Company e Galeria Brito Cimino, reúne colagens e montagens fotográficas realizadas por Geraldo entre 1996 e 1998, ano de seu falecimento. Fotoformas, por sua vez, retrocede no tempo e apresenta imagens produzidas pelo fotógrafo entre 1948 e 1951. Este último volume, na verdade, é uma edição fac-similar do catálogo da exposição “Geraldo de Barros, Pintor e Fotógrafo”, realizada em Lausanne, França, em 1993, adicionada de uma fortuna crítica com textos de Pietro Maria Bardi, Paulo Herkenhoff, Nelson Aguilar, entre outros. O intervalo entre Sobras e Fotoformas se explica: Geraldo de Barros foi um homem de muitos talentos. Além de pintor e fotógrafo, atuou também como designer, movendo-se de uma atividade à outra com sem preocupar-se com fronteiras.

As imagens reunidas em Fotoformas são simplesmente fundamentais para uma apreciação da trajetória artística de Geraldo de Barros e, de modo mais geral, para um exame da experiência moderna no Brasil no campo das artes visuais. Geraldo de Barros nasceu em Xavantes, interior do Estado de São Paulo, em 1923. Já na capital paulista, ele iniciou a sua formação em artes plásticas, no ateliê do pintor Clóvis Graciano, em 1946. Junto com outros jovens artistas, Geraldo fundou o “Grupo XV” em 1948. Auxiliado então pelo amigo Athaíde de Barros, montou um pequeno laboratório fotográfico no ateliê do grupo e adquiriu, no ano seguinte, a sua primeira máquina fotográfi ca, uma Rolleiflex 1939.

 

Pictorialismo

No período de formação de Geraldo, a fotografia produzida no Brasil era ainda influenciada pelo movimento pictorialista, surgido na Europa e nos Estados Unidos no fim do século 19. Como sugere o nome, o movimento pictorialista produzia fotografias a partir de uma sensibilidade pictórica. Evidentemente, havia implicações. Os temas tratados pelo fotógrafo deveriam ser aqueles consagrados pela pintura: o retrato, a paisagem e a natureza-morta. O enquadramento, como conseqüência, deveria privilegiar de modo convencional a relação entre fi gura e fundo. E, mais importante, o movimento pictorialista defendia a legitimidade da interferência manual sobre a imagem fotográfica, desde que ela fosse realizada com o objetivo de garantir a fi delidade do produto final a gêneros também consagrados pela pintura, como o naturalismo, o realismo e mesmo o impressionismo. Dito de outro modo, no cerne do programa pictorialista residia uma atitude romântica de desconfiança em relação à máquina e à possibilidade introduzida pela fotografia de produção de imagens de modo mecânico e virtualmente automático.

Da invenção da fotografia na primeira metade do século 19 até as primeiras décadas do século 20, essa desconfiança era frequentemente expressa por meio da pergunta: é possível fazer arte com a fotografia? “Sim”, diriam os pictorialistas, desde a fotografia seja submetida ao gênio do artista, ou melhor, à sua intervenção direta, manual. Da manipulação química da imagem à pigmentação controlada, do recurso ao flou (fora de foco) ao emprego do lápis, da caneta, do pincel e das tintas para a realização de todo tipo de correção e retoque, os fotógrafos pictorialistas desenvolveram técnicas que procuravam preservar a suposta autonomia do artista em relação à máquina, circunscrevendo, ao mesmo tempo, a imagem fotográfica a uma sensibilidade morna, convencional, estabelecida. Muitas vezes de difícil aplicação, as técnicas pictorialistas garantiam também a manutenção da diferenciação social entre artistas e fotógrafos amadores.

Geraldo de Barros pensou diferente. Em 1949, tornou-se membro do Foto Cine Clube Bandeirante, na capital paulista, com o objetivo de aprimorar seus conhecimentos sobre a técnica fotográfica. Como outros clubes de fotógrafos amadores do período, o Cine Clube Bandeirante tinha uma forte orientação pictorialista. Do ponto de vista institucional, era uma organização predominantemente masculina e elitista, formada em sua maioria por profissionais liberais que dispunham da necessária retaguarda financeira para financiar o hobby da fotografia. Geraldo era bancário, funcionário de carreira do Banco do Brasil.

Em um período muito breve, de 1949 a 1951, ele realizou uma série de experimentos fotográficos que romperam com a sensibilidade pictorialista em voga. Em primeiro lugar, pela escolha dos temas: Geraldo olhou para a cidade, para a sua arquitetura e seus detalhes, e da cidade retirou formas que se cristalizaram em sua obra de modo quase abstrato. Em segundo lugar, pelos procedimentos que utilizou, dois dos quais merecem destaque: a interferência com nanquim e ponta-seca sobre o negativo fotográfico e a múltipla exposição.

As interferências manuais realizadas por Geraldo de Barros sobre o negativo não têm o caráter mimético defendido pelo pictorialismo; não se trata, portanto, da produção de semelhanças entre representação e representado. Neste momento Geraldo fotografa paredes, e das paredes extraí, com o auxílio de sua câmera, texturas, ranhuras, marcas, e       fissuras. São imagens de objetos banais, submetidas, no entanto, a um enquadramento preciso. Geraldo então risca os negativos: com a ponta-seca, o fotógrafo retira material e faz da transparência que resulta uma marca visível de sua intervenção; com o nanquim, Geraldo desenha. E assim elabora um calculado jogo de luzes e sombras sobre a massa predominantemente cinza do negativo. A partir das interferências, a figura retorna, recalcitrante. O realismo, no entanto, é deslocado, e Geraldo flerta com o abstracionismo e mesmo, diriam alguns, com o surrealismo, como na impagável A Menina do Sapato, de 1949. Geraldo é generoso nesta série; não somente pela homenagem que presta a Pablo Picasso e Paul Klee, mas também pelo bom humor e pela irreverência que contaminam as suas imagens.

 

Fotoformas

Contudo, é com o recurso da múltipla exposição do negativo fotográfico que a arte de Geraldo de Barros ganha contornos defi nitivamente inovadores. Como sugerido pelo nome, o procedimento consiste na realização de sucessivas exposições fotográficas em um mesmo negativo. Entre um registro e outro, Geraldo submetia a sua câmera a algum tipo de movimento: deslocamento horizontal ou vertical, rotação, aproximação ou distanciamento em relação ao objeto. Como resultado, a múltipla exposição permite a construção de imagens fotográficas por meio da sobreposição de diferentes impressões fotônicas, imagens para as quais Geraldo de Barros deu o nome de fotoformas em razão de seu notável caráter construtivo. Entre as mais expressivas de sua produção, podemos mencionar as fotoformas realizadas na Estação da Luz, em São Paulo, entre 1950 e 1951.

A essa altura, a fotografia de Geraldo de Barros é outra. O fotógrafo dizia-se inspirado por Klee, e podemos encontrar nas vanguardas européias ocorrências precedentes desta utilização transgressora da fotografia. No entanto, o que ocorre é que Geraldo preconiza com suas fotoformas uma nova possibilidade de articulação entre o homem e a máquina (ou entre o fotógrafo e a câmera), não mais pautada pela lógica do controle. De acordo com a lógica do controle, a relação entre o homem e a máquina é sempre entre vencedores e vencidos: ou o homem controla a máquina ou é por ela controlado. No âmbito da reflexão sobre a fotografia, coube ao filósofo Vilém Flusser alinhavar os fundamentos dessa lógica em seu conhecido trabalho A Filosofia da Caixa Preta.

Geraldo, diferentemente, descarta a lógica do controle, afirmando que “é também no “erro”, na exploração e domínio do acaso, que reside a criação fotográfica”. E prossegue: “Me preocupei em conhecer a técnica apenas o suficiente para me expressar, sem me deixar levar por excessivos virtuosismos. Acredito que a exagerada sofisticação técnica, o culto da perfeição técnica, leva a um empobrecimento dos resultados, da imaginação e da criatividade, o que é negativo para a arte fotográfica”.

Ora, a incorporação do erro e do acaso e a renúncia ao virtuosismo são subjacentes a um tipo de sensibilidade que deseja operar na margem de indeterminação do objeto técnico. Assim, à ordem binária da lógica de controle (ou isto ou aquilo), Geraldo sobrepõe a ordem relacional da lógica da multiplicidade (isto e aquilo). Este é um deslocamento fundamental realizado por Geraldo de Barros. Em última instância, é esse deslocamento que o diferencia de ilustres contemporâneos como José Yalenti, Thomaz Farkas e German Lorca, ainda que pese a importância que todos tiveram para o desenvolvimento da fotografia moderna no Brasil.

A substituição da ordem binária pela ordem relacional adquire contornos bastante tangíveis em duas impressionantes fotoformas de 1949. Nelas, Geraldo utiliza montagens feitas com cartões perfurados por computador para depositar sombras sobre o papel fotográfico e, assim, controlar a sua sensibilização de modo direto, em laboratório, sem câmera. São os chamados “fotogramas”, ou “raiogramas”, cuja realização remonta às origens da fotografia com os experimentos de Thomas Wedgwood no fim do século 18, na Inglaterra, para não falar dos conhecidos fotogramas de Willian Fox Talbot, o inventor da calotipia (um processo fotográfico primitivo), realizados na década de 1840, também na Inglaterra. No contexto das vanguardas do século 20, o fotograma foi vigorosamente explorado por Man Ray e László Moholy-Nagy, entre outros. No caso dos dois fotogramas realizados por Geraldo, a originalidade de sua intervenção advém, em parte, do emprego de um novo material, os cartões perfurados por computador. Mas, ao mesmo tempo, é importante registrar que Geraldo aqui realiza uma operação tradutória de escopo concretista, fazendo do suporte de uma mensagem (cartões perfurados) a sua principal mensagem (fotogramas).

A ligação de Geraldo de Barros com o concretismo se estreita a partir de 1952, com a sua associação ao Grupo Ruptura, o principal articulador do movimento concretista paulista. A essa altura, a sua obra fotográfica já era bastante conhecida, sobretudo pela bem-sucedida exposição Fotoforma, realizada no Museu de Arte de São Paulo (Masp) em 1950. Com o concretismo, Geraldo abandona a fotografi a para dedicar-se à pintura e ao design no curso dos 40 anos seguintes. A trajetória completa do fotógrafo, pintor e designer Geraldo de Barros está registrada no segundo volume da caixa, redigida por seu genro, o documentarista Michel Favre.

Em 1979, Geraldo sofre a primeira de uma série de quatro isquemias cerebrais que o deixam progressivamente paralisado. Assim, é sob uma severa condição clínica que retorna à fotografia, em 1995. Com o auxilio de uma assistente, Geraldo trabalha sobre imagens fotográficas de seu acervo pessoal, incluindo imagens realizadas com a família, em viagens de férias, muitos anos antes, e delas faz colagens e montagens fotográficas. Mais de 250 ao todo. São as Sobras.

 

Esta resenha foi publicada na revista Foco - Economia e Negócios, n. 49, pp. 61-63, 15 março 2007. Agradeço a Luiz Antonio Cintra.

 


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