Triângulo São Paulo é um livro bom de pegar, de acariciar, de fuçar, de mexer e remexer. Tem texturas, cores, recortes, espaços para desenhar e colorir. Muito sol, muito breu, muito branco. Fotos, mapas, verbetes. Truques e revelações: as cidades invisíveis que pulsam nas frinchas, nos big closes, nas angulações inesperadas. Uma cidade impossível que vira conceito que se multiplica em outras cidades imagináveis.
Um livro paradoxal para uma cidade idem: um guia para se perder no centro. Um livro de figurinhas de linguagem pra você colecionar ao sabor do desejo. Ou talvez um manual místico: a arte zen de deambular por São Paulo.
Arco, arranha-céu, bandeira, beijo roubado, bênção... Sentinela, Sítio, Solar, Transparência... Eis o dicionário, virado a paulista, pra devorar a moda de um Oswald ou de um Mário. Você pode espetar a ponta do compasso no marco zero, centro do centro, na Sé, e traçar o seu riscado. Ou não. Pode simplesmente ziguezaguear por quase quinhentos anos de história, no núcleo duro, abarrotado de fantasmas, de Sampa.
Praça do Patriarca, Edifício Martinelli, Mosteiro de São Bento. Cafés, coxinhas, pastéis de nata. Índios, portugueses, espanhóis. Ferro, concreto, vidro. Monumento, fachada, claraboia. Da Companhia de Jesus às más companhias das esquinas sujas. Santos e amantes abençoando os andarilhos que passam, com muita, muita pressa, olhando pro chão.
E de repente você para, com nosso livro na mão, e muda a mirada. Seus olhos, inspirados pela obra, dão um 360, e se desdobram: vê só aquela menina naquele canto, escuta só aquele canto daquela menina...
O coração rola pela ladeira da memória. Epifania. Iluminação. Benjamins alucinados refletidos nas vitrines...
Então fica mais um pouco aqui comigo, nesse banco de praça, e conversemos mais um pouco, como bons estranhos: preciso te dizer que esse é um livro essencial.
Essencial para quem ainda não conhece a cidade em que vive, encalacrado num condomínio, na cabine do utilitário, na cabeça de paulistano de caricatura, que pra viajar logo pensa em apresentar o passaporte.
Também é um grande livro para quem leva sua cidade-aldeia no peito, e que tanto em Nova Iorque ou Lisboa, Paris ou Buenos Aires, encontra nos cantos reflexos da sua cidade. Ou da cidade que o possui, muitas vezes com ódio e sordidez.
E é também um livro brilhante pra quem simplesmente adora essa cidade, mesmo que muitos cantem que não existe amor em SP.
Triângulo São Paulo é dessas raras comprovações de que a academia e a cidade não são universos paralelos. Fruto de uma pesquisa acadêmica (apaixonada, obsessiva, minuciosa), trabalho de conclusão de curso de Design na ESPM, dos então alunos Fernando Östlund e Rafael Pavan, já no nascedouro dava pinta de clássico, obra de referência, para ser editada com esmero e apoio de gente grande, para chegar a uma ampla gama de leitores.
Isso foi o que recomendou a banca que aprovou com louvor o projeto – e da qual tive a honra de fazer parte. Que felicidade: isso foi o que, afinal, acabou acontecendo!
Não podia ser diferente.
De minha parte, declaro que inventei São Paulo pelas mãos de meu pai, que trabalhava “na cidade” (como a gente chamava o centro há 40 anos) e depois disso venho me perdendo irremediavelmente por suas quebradas, escrevendo livros, peças, poemas sem fim sobre essa cidade musa e maldição. Portanto, como amante possessivo, tinha tudo para desdenhar a ousadia dos meninos... Mas caí de boca, me entreguei com tradicional deselegância discreta e promíscua a esses dois profissionais!
Livrinho para carregar na bolsa. Livraço. Uma passagem e um convite: venha se perder!
A gente se desencontra por aí.
Celso Cruz é dramaturgo, terapeuta e publicitário. Atualmente é professor nos cursos de Design, Comunicação e Administração da ESPM. Encenou dezenas de espetáculos, publicou dois livros, fez pós-doutorado na ECA-USP.
