Ano: I Número: 5
ISSN: 1983-005X
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Padrões Financeiros do Gosto
Thorstein Veblen, 1899
Tradutor(a):Marcello Montore

A advertência já foi repetida mais de uma vez: enquanto o modelo que regulamenta o consumo exige, em grande parte, o desperdício conspícuo, esse princípio na sua forma simples e rudimentar não deve ser entendido, de maneira alguma, como a motivação pela qual age o consumidor. Geralmente a sua motivação é um desejo para conformar-se a um costume estabelecido, para evitar comentários e observações desfavoráveis, e viver à altura dos cânones da decência no tipo, quantidade e categoria dos bens consumidos, e no emprego apropriado do seu tempo e esforço. Na maioria dos casos, esse sentido do uso prescritivo está presente nas motivações do consumidor e exerce uma coerção direta, especialmente no que se refere o consumo que ocorre sob o olhar de observadores. Porém um elemento considerável da prescrição do gasto dispendioso também pode ser identificado no consumo que não é observado, em qualquer grau, por estranhos – como, por exemplo, de roupas de baixo, alguns artigos para alimentação, utensílios de cozinha e outros equipamentos domésticos, projetados mais para o serviço do que para a exibição. Em todos esses objetos utilitários, um exame cuidadoso irá revelar certas características que elevam o custo e o valor comercial dos bens em questão, mas não aumentam, proporcionalmente, a utilidade relacionada aos fins materiais para os quais foram aparentemente projetados.

Sob o controle seletivo da lei do desperdício conspícuo difunde-se um código de princípios reconhecidos do consumo, cujo efeito é prender o consumidor a um padrão de preço elevado e desperdício em seu consumo de bens e no emprego de seu tempo e esforço. Esse crescimento do uso prescritivo tem um efeito imediato sobre a vida econômica, mas apresenta também um efeito indireto e mais oculto sobre o comportamento também em outros aspectos. Hábitos de pensamento com respeito à expressão da vida em qualquer direção, afetam, inevitavelmente, a percepção usual do que na vida é bom e certo também em outras direções. No complexo orgânico dos hábitos de pensamento que criam a substância da vida consciente do indivíduo, o interesse econômico não se encontra isolado ou distinto de todos os outros interesses. Alguma coisa, por exemplo, já foi dita sobre a sua relação com os cânones da respeitabilidade.

O princípio do desperdício conspícuo guia a formação dos hábitos de pensamento como, por exemplo, o que seja honesto e respeitável tanto na vida quanto nos objetos. Ao fazer isso, esse princípio transpassa outros modelos de conduta que não têm a ver, essencialmente, com o código da honra pecuniária, mas que têm, direta ou incidentalmente, um significado econômico de alguma magnitude. Dessa forma, o cânone do desperdício honorífico pode, imediata ou remotamente, influenciar o senso de dever, de beleza, de utilidade, de conveniência devocional ou ritualística e o senso científico da verdade.

[...]

Os requisitos de decência financeira têm influenciado, em grande medida, a percepção de beleza e de utilidade em relação aos objetos belos ou funcionais. Objetos são, até certo ponto, preferidos pelo fato de serem conspicuamente perdulários; eles são percebidos como necessários na proporção do seu desperdício e da sua má adaptação ao seu uso aparente.

A utilidade dos objetos valorizados por sua beleza depende muito intimamente do seu preço elevado. Uma ilustração simples irá mostrar essa dependência. Uma colher de prata feita a mão, cujo valor comercial é de dez a vinte dólares, de modo geral, não desempenha melhor a sua função do que uma colher do mesmo material produzida industrialmente. Pode mesmo não ser melhor do que uma colher industrializada feita de algum outro metal menos nobre, como o alumínio, cujo valor não é superior a dez ou vinte centavos. O primeiro utensílio é, de fato, um instrumento menos eficaz para seu objetivo aparente do que o último. Ao se adotar esse ponto de vista da questão, uma réplica está, é claro, pronta para indicar que um dos usos principais, se não o principal, da colher mais cara é ignorado; a colher feita a mão gratifica nosso gosto, nosso senso de beleza, enquanto aquela feita por máquinas a partir de um metal menos nobre não tem outra tarefa além da eficiência bruta. Indubitavelmente, os fatos são esses, mas ao ponderá-los ficará evidente que a réplica é, afinal, mais plausível do que conclusiva. Parece que (1) enquanto os diferentes materiais com os quais as duas colheres são feitas possuem beleza e utilidade para o objetivo para o qual são usados, o material da colher feita a mão é cerca de mil vezes mais valioso do que o metal menos nobre, sem que o exceda em sua beleza intrínseca de textura ou cor

O caso das colheres é típico. De maneira geral, a gratificação superior derivada do uso e da contemplação de produtos mais caros e supostamente belos é, em grande medida, uma gratificação de nossa percepção do preço elevado disfarçado sob o nome de beleza. O que tanto apreciamos nesses objetos, é freqüentemente o seu caráter honorífico superior, muito mais do que uma natural apreciação da sua beleza. O requisito do desperdício conspícuo não se encontra normalmente presente de modo consciente no nosso padrão de gosto, mas não está menos presente como um modelo obrigatório, moldando seletivamente, corroborando o nosso senso do que é belo e guiando nosso juízo a respeito do que pode ou não ser legitimamente louvado como belo.

[...]

Até o momento, a generalização pela qual a discussão se fundamenta é que qualquer objeto valioso, para que apele ao nosso senso de beleza, deve conformar-se às exigências tanto de beleza quanto de preço elevado. Mas isso não é tudo. O cânone do alto custo, além disso, também afeta o nosso gosto de modo a misturar, indissociavelmente, na nossa apreciação, os traços daquilo que é dispendioso às características de beleza do objeto, subordinando o efeito resultante ao respaldo da simples valorização da beleza. Os traços dispendiosos são aceitos como características belas dos objetos caros. Satisfazem como marcas honoríficas do dispêndio, e o prazer que se obtém nesse quesito se mescla com aquele obtido pela forma bela e pela cor do objeto; desse modo, declaramos, freqüentemente, que um objeto ostentatório, é, por exemplo, "perfeitamente belo" quando, no entanto, a análise do seu valor estético fundamenta, na verdade, que o que estamos declarando, de fato, é que ele é financeiramente honorífico.

[...]

O cânone da beleza requer a expressão do genérico. A "novidade" favorecida pela demanda do desperdício conspícuo transpassa esse cânone da beleza, o que faz com que a aparência dos nossos objetos prediletos resulte num amontoado de idiossincrasias; e as idiossincrasias estão, além do mais, sob o controle seletivo do princípio do gasto elevado, e sem ser, em qualquer medida, superior à sua resistência mecânica; (2) se uma inspeção cuidadosa mostrar que a suposta colher feita a mão é, na realidade, apenas uma imitação muito boa de bens feitos a mão, uma imitação tão habilmente trabalhada para dar a qualquer pessoa a mesma impressão de forma e superfície, exceto quando examinada por um olho treinado, a utilidade do objeto, incluindo a gratificação que o usuário obtém a partir da sua contemplação como um objeto de beleza, seria imediatamente reduzida em torno de 80 a 90 por cento ou até mais; (3) se as duas colheres são, para um observador razoavelmente atento, tão idênticas na aparência que apenas o peso mais leve do objeto espúrio o trai, essa identidade de forma e cor certamente não irá acrescentar valor à colher produzida industrialmente, nem aumentar significativamente a gratificação estética do usuário, já que a colher mais barata não é uma novidade, e uma vez que ela pode ser encontrada a preço reduzido.

Esse processo de adaptação seletiva dos projetos à finalidade do desperdício conspícuo, e a substituição da beleza estética pela beleza pecuniária, tem sido especialmente eficaz no desenvolvimento da arquitetura. Seria extremamente difícil encontrar uma residência ou um edifício público moderno civilizado que pudesse reivindicar mais do que do que uma relativa inocência aos olhos de qualquer pessoa que fosse dissociar os elementos da beleza daqueles do gasto honorífico. A variedade infinita das fachadas das melhores moradias de nossas cidades é uma variedade sem fim de desgraças arquitetônicas e sugestões de caro desconforto. Podemos considerar como belas as paredes mortas, laterais e traseiras, dessas estruturas que, intocadas pelas mãos do artista, são normalmente os melhores traços do edifício.

Com exceção de uma pequena mudança dos termos, o que foi dito sobre a influência da lei do desperdício conspícuo sobre os cânones do gosto permanecerá válido a respeito da sua influência sobre nossa noção de utilidade dos bens para para outras finalidades que não a estética. Os bens são produzidos e consumidos como um meio de expandir plenamente a vida humana; e sua utilidade consiste, em primeiro lugar, na sua eficiência como um meio para este fim. O fim é, em primeiro lugar, a realização da vida do indivíduo, tomada em termos absolutos. Mas a propensão humana para a rivalidade apoderou-se do consumo de bens como um meio hostil de comparação, e com isso investiu bens de consumo pomposos com a utilidade secundária de evidenciar a capacidade relativa de pagar.

Esse uso indireto ou secundário dos bens de consumo empresta um caráter honorífico ao consumo e agora, também, aos bens que melhor atendem ao seu fim competitivo. O consumo de bens caros é honorífico, e os bens que contêm uma parcela apreciável de custo excessivo em relação à sua finalidade mecânica aparente são honoríficos. Os traços do alto preço supérfluo dos bens são, portanto, traços de valor – de grande eficiência para o fim indireto, hostil, para ser apropriado pelo seu consumo; e inversamente são humilhantes e desprovidos de atrativos os bens que mostram uma adaptação demasiado correta ao seu fim mecânico e não incluem uma margem de desperdício na qual se apóia uma complacente e hostil comparação. Essa utilidade indireta empresta muito do seu valor aos "melhores" tipos de bens. De modo a apelar ao senso refinado da utilidade, um objeto deve conter algo dessa utilidade indireta.

Ao desaprovar um modo barato de viver porque ele indica incapacidade de gastar e falta de sucesso financeiro, os homens acabam por se habituar a desaprovar coisas baratas considerando-as intrinsecamente não honoráveis ou não valiosas pelo fato de serem baratas. Ao longo do tempo, cada geração recebeu da anterior essa tradição do consumo honorífico e, por sua vez, levou adiante e fortaleceu o cânone tradicional da reputação pecuniária dos bens consumidos; até que finalmente alcançamos tal grau de convicção da falta de valor de todas as coisas baratas, que não mais hesitamos em utilizar a máxima "ruim e barato" ["cheap and nasty" no original]. O hábito de aprovar o caro e desaprovar o barato está tão perfeitamente entranhado em nosso pensamento que, de forma instintiva, insistimos, pelo menos em algum grau de desperdício financeiro em todo nosso consumo, mesmo no caso dos bens consumidos em estrita privacidade e sem a menor intenção de serem mostrados. Todos sentimos, sinceramente e sem hesitação, que nos elevamos espiritualmente, mesmo na privacidade dos nossos lares, ao fazer nossas refeições diárias com talheres artesanais de prata e porcelanas pintadas a mão (freqüentemente de duvidoso valor artístico) sobre toalhas de linho muito caras. Qualquer rebaixamento do padrão de vida tido como valioso, com o qual estamos acostumados, é percebido como (sendo) uma cruel violação da nossa dignidade humana. Assim, também as velas, nos últimos anos, têm sido fonte de luz mais prazerosa do que qualquer outra em jantares. A luz das velas é, agora, mais suave, menos penosa para os olhos bem cultivados do que a luz elétrica, a óleo ou gás.

O mesmo não poderia ter sido dito há trinta anos atrás, quando as velas eram o tipo mais barato de iluminação para uso doméstico. Tampouco as velas são atualmente usadas, para fornecer luz aceitável ou efetiva para qualquer outro tipo de iluminação além da cerimonial.

Acerca desse assunto, um sábio político ainda vivo, chegou à seguinte conclusão no ditado: "um casaco barato faz um homem barato" ["a cheap coat makes a cheap man" no original], e não há, provavelmente, ninguém que não sinta a força convincente dessa máxima.

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A questão da diferença material entre bens produzidos industrialmente e bens manufaturados, que servem às mesmas finalidades, é que os primeiros geralmente atendem mais adequadamente à sua finalidade primeira. São um produto mais perfeito – mostram uma adaptação mais perfeita dos meios a um fim. Isso não os salva da falta de estima e da depreciação, porque eles não passam no teste do "desperdício honorífico". O trabalho manual é um método de produção com mais desperdício; daí que os bens produzidos por esse método são mais úteis para (o objetivo da) a reputação financeira; decorre desse fato que as marcas do trabalho manual se tornam honoríficas e os bens que exibem essas marcas são mais valorizados do que os seus equivalentes industriais. Comumente, se não invariavelmente, as marcas honoríficas do trabalho manual são certas imperfeições e irregularidades nas formas do objeto mostrando, dessa maneira, onde o trabalhador foi menos hábil na execução do projeto. O fundamento da superioridade dos bens manufaturados é, por conseguinte, uma certa margem de rusticidade. Essa margem nunca deve ser tão grande a ponto de mostrar um serviço mal feito, uma vez que isso iria evidenciar um baixo valor, nem tão pequena que possa sugerir uma precisão ideal que é obtida apenas pela máquina, porque isso também seria evidência de um baixo valor.

[...]

Como já foi apontado, os objetos do consumo diário baratos, e portanto indecorosos, nas comunidades industriais modernas são comumente produtos da máquina; e a característica genérica da aparência dos artefatos industriais quando comparados com aqueles manufaturados é sua maior perfeição e precisão na execução dos detalhes do projeto. Daí decorre o fato das imperfeições visíveis dos bens manufaturados, serem honoríficas, e serem marcas contabilizadas de superioridade na questão da beleza, da utilidade, ou de ambos. Daí que surge a exaltação da "imperfeição" a respeito da qual John Ruskin e William Morris eram ávidos representantes na sua época; e com essa premissa, sua propaganda de "rudeza" e desperdício de esforços tem sido abraçada e levada adiante desde aquele tempo. É daí, também, que surge a propaganda para o retorno à artesania e às indústrias domésticas. Muito do trabalho e das especulações desse grupo de homens, sob a caracterização dada aqui, claramente teriam sido impossíveis num tempo no qual bens visivelmente mais perfeitos não fossem os mais baratos.

Texto extraído de:

VEBLEN, Thorstein. The Theory of the Leisure Class: An Economic Study of Institutions (1899; reimpressão: Nova York: Macmillan & Co, 1905).

 

Sobre o Autor(a):

Thorstein Veblen (1857-1929), economista e sociólogo norte-americano, descendente de imigrantes noruegueses. A sua independência intelectual e de comportamento não facilitou a sua carreira acadêmica e ele foi professor nas universidades de Chicago, Stanford e Columbia, sucessivamente. Em Teoria da Classe Ociosa, seu mais conhecido ensaio, introduziu a expressão "consumo conspícuo" para identificar o gasto realizado com a finalidade de demonstrar aos olhos dos outros a capacidade de gastar daquele que consome. Veblen identificou na sociedade capitalista moderna a competição febril entre os indivíduos por intermédio do consumo conspícuo.

Se concordamos com ele, e também com Pierre Bourdieu, o juízo estético nada tem de desinteressado. Julgamos belo e desejável aquilo que é caro, e cuja posse nos distingue. E não importa absolutamente se desfrutamos o objeto cobiçado e dispendioso somente na intimidade do lar – o prazer da distinção honorífica não é assim menos vívido.

Apreciamos os materiais raros e as qualidades decorativas dos objetos, inclusive dos objetos úteis, pois o seu "excesso" evoca a ociosidade vivenciada exclusivamente pelos muito ricos. Veblen acreditava que seus contemporâneos eram incapazes de apreciar o utensílio funcional, despojado e acessível, produzido industrialmente com materiais comuns, pois a sua associação com mundo do trabalho era supostamente indigna.

Não sem ironia, ele considerou a valorização da imperfeição discreta dos objetos realizados artesanalmente como um esnobismo essencialmente moderno. No entanto, ao longo do século XX, os ofícios artesanais foram progressivamente marginalizados e as marcas que produzem ou comercializam bens em escala planetária tornaram-se o principal combustível do consumo conspícuo. (Gilberto Paim)

 


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