Ano: I Número: 1
ISSN: 1983-005X
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Cerâmica
Adolf Loos, 1904
Tradutor(a):Gilberto Paim

O homem que participa da cultura contemporânea gosta de objetos de vidro, porcelana, faiança e grès sem decoração. Ele sabe que um copo serve para beber água, vinho, cerveja ou licor. Esta é a razão pela qual não tenho apreço pelo uso decorativo dos velhos provérbios alemães ou pelos ornamentos secessionistas1. Há modos de tratar o vidro para tornar mais bela a cor da bebida. Num certo copo a água parecerá insípida e morna, num outro parecerá saída de uma fonte de montanha. A diferença resulta da qualidade do material e da forma do copo. Ao comprar copos, encha-os de água e escolha o que mais lhe agradar. Copos decorados como se neles nadassem sanguessugas verdes não encontrariam comprador depois do teste.

O líquido não deve apenas estar bem apresentado, é importante também que possa ser bebido com prazer. Os copos fabricados nos três últimos séculos quase sempre satisfizeram estas exigências. É uma peculiaridade do nosso tempo – não, não quero falar mal do nosso tempo – que os nossos artistas imaginem, além de decorações pouco apetitosas, formas nas quais é impossível beber. Alguns copos fazem a água escorrer à direita ou à esquerda dos lábios. Certos copos de licor só podem ser esvaziados pela metade. Sejam prudentes em relação às formas modernas e prefiram as antigas.

A mesma observação vale para os pratos. Nossa sensibilidade é mais delicada do que a dos homens do Renascimento que não se incomodavam em cortar a carne sobre um fundo de representações mitológicas. É ainda mais delicada do que a sensibilidade rococó que apreciava a louça estampada com cebolas azuis que davam à sopa um desagradável aspecto cinza esverdeado. Nós preferimos comer sobre um fundo branco. Nós. Os artistas têm outra posição sobre o assunto.

No entanto, os produtos de cerâmica não servem apenas para cozinhar, comer e beber. São também azulejos, revestimentos de mesa e parede, lareiras e chaminés, vasos de flor e porta guarda-chuvas. Enfim, o artista modela, esmalta e queima a argila porque sente necessidade de representar homens, animais, flores e minerais.

Estava certa vez num café na companhia de um grupo de “artistas aplicados”. Falava-se em criar uma seção de cerâmica na Escola de Artes Decorativas. Eu era contra tudo o que aqueles senhores propunham, e todos eram contra mim. Defendia o ponto de vista do mestre artesão, simples operário. Eles valorizavam o ponto de vista do artista.

Um dos meus interlocutores trouxera uma magnífica flor vermelha de pétalas sedosas que estava num vaso sobre a mesa. Alguém me disse: “Veja, sr. Loos, o senhor nos pede para fazer apenas vasos. Mas nós queremos tentar fabricar um esmalte que tenha a cor desta flor”. Todos se entusiasmaram pela idéia. Todas as flores da Terra deveriam inspirar a pesquisa de novos esmaltes. Discutiu-se e discutiu-se...

A natureza me deu um dom precioso: me fez duro de orelha. Sendo assim, posso ficar no meio de uma discussão sem precisar ouvir bobagens. Sigo tranqüilamente os meus pensamentos.

Foi então que me lembrei do meu mestre. Não é um artista, é um operário. Não vê flores. Não conhece cores. Porém a sua alma está cheia de cores que só podem existir nos esmaltes de suas cerâmicas.

Vejo o mestre diante de mim. Está sentado próximo ao forno e aguarda. Ele sonhou com cores com as quais o Criador esqueceu de sonhar. Nenhuma flor, nenhuma pérola, nenhum bronze tem cores parecidas. E todas elas devem se tornar realidade, devem cintilar e brilhar, e encher os homens de alegria ou melancolia.

“O fogo está queimando -- ele pensa. A meu favor ou contra? Fará surgir as formas sólidas com as quais sonhei ou as devorará? Conheço as tradições milenares dos ateliês. Nada ignoro do que convém ao ceramista,  experimentei tudo. No entanto ainda não chegamos ao fim do caminho. O espírito da matéria está ainda longe de ser ultrapassado.”
Que esse momento nunca chegue! Que os segredos da matéria permaneçam misteriosos! Caso contrário o mestre não se sentará diante do forno, cheio de felicidade e tormento, aguardando e sonhando com cores novas, com novas tonalidades que a sabedoria divina esqueceu de criar para que o homem pudesse participar da alegria grandiosa da criação...
-- Então, sr. Loos, em que está pensando? -- alguém me perguntou. Não pensava em nada.

Os artistas sentam-se diante de suas pranchetas e fazem projetos para o ceramista.Dividem-se em dois grupos. Alguns “projetam” em todos os estilos, outros apenas no estilo “moderno”. Os dois campos se desprezam cordialmente. Os artistas “modernos” se dividem uma segunda vez. Uns exigem que o ornamento seja inspirado na natureza, outros o admitem apenas quando brota exclusivamente da imaginação. Os três grupos, porém, desprezam o meu mestre. Por que? Porque ele não sabe desenhar. No entanto, isso em nada o atrapalha. Os azulejos criados há dez anos por Bigot em Paris  nada perderam do seu charme, enquanto modelos lançados há cinco anos por artistas põem os nossos nervos à flor da pele. Esta observação se aplica a todos os projetos que seguem a mesma direção.

Quem adquire objetos de cerâmica nunca deve perder de vista o que acabo de dizer. Não devemos gastar nosso dinheiro para nos revoltar três anos depois contra as nossas aquisições. Os objetos que trazem a marca de um mestre, de um criador, conservarão sempre o seu valor. Os objetos com ornamentos secessionistas devem ser rejeitados, mesmo quando nos agradam. Eles não nos agradam porque são belos ou porque correspondem à nossa sensibilidade, mas porque tentaram nos empurrar nessa direção. Devemos confiar em nossa sensibilidade anterior aos escritos de Hermann Bahrs 2
Prancheta e forno do ceramista! Um mundo os separa. De um lado a exatidão do compasso, do outro a indeterminação do acaso, do fogo, dos sonhos humanos, o mistério da mudança.

Escrevo para homens que são dotados de sensibilidade moderna. Para homens que agradecem aos Céus por viver hoje. Não escrevo para homens nostálgicos da Renascença ou do Rococó. Tais homens existem e sempre se referem aos séculos passados, quando pintores e escultores entregavam seus projetos aos artesãos. Eles se referem à Renascença quando os homens bebiam em taças gravadas com a batalha das Amazonas. Aos saleiros em forma de embarcações sustentadas por deuses marinhos cujo leme serve de colher. Indivíduos estranhos ao mundo moderno, que gostam de entregar os seus projetos a artesãos. Ou que tudo modelam eles mesmos, caso os seus pais os tenham enviado à escola de escultura.

Você deseja um espelho? Uma mulher nua o sustenta. Quer um tinteiro? Ninfas brincam em volta de dois rochedos: um contém a tinta, o outro a areia para secá-la. Quer um cinzeiro? Uma dançarina rodopia diante de você, e você pode deixar cair a cinza apoiando o charuto no nariz dela.

Nunca gostei disso. Dizem então os artistas: olhem, eis um inimigo da arte! Mas o contrário é verdadeiro: eu queria proteger a arte contra os que a  corrompem. Cobram de mim que exponha na Secessão. Eu o faria se os comerciantes fossem expulsos do templo. Os comerciantes? Não. Os prostituidores da arte.

Afastem-se dos profetas da Renascença! Apreciem os seus objetos modernos! Admirem esses maravilhosos espelhos! A Renascença jamais soube fabricar um espelho que refletisse um lenço branco com tanta pureza e frescor! Vejam esse soberbo tinteiro. O seu grande cubo de cristal reluz e não se pode ser derrubado. Vejam esse magnífico cinzeiro. É uma grande taça de vidro com incrustação de prata. Contém a água que apaga imediatamente os restos dos charutos. A estrutura de prata tem curvas que recebem os charutos acesos. A Renascença nos ofereceu objetos tão extraordinários? Sejam felizes, homens do século vinte!

Vemos muitos animais de porcelana branca nas vitrines. Manchas amarelas ou azuis lhes dão, sob o esmalte, um “chic” especial.  São bonitos os  objetos que vêm de Copenhagen. O gato enroscado em si mesmo. Ou os dois cachorrinhos que se apertam um contra o outro. Eles me agradam muitíssimo...nas vitrines. Ficaria embaraçado se alguém me presenteasse com um desses animais. Eu não os poria em nenhum lugar no meu apartamento. Os visitantes entrariam e diriam: “Ah, Copenhagen!”. Isso agrada. Assim como temos prazer ao ouvir a exclamação do conhecedor quando lhe oferecemos um charuto: “Bocks imperiais! Duas coroas cada!” Isso dá uma alguma satisfação, mas como é possível viver sendo observado todos os dias por animaizinhos cheios de pérfido humor? Não tenho humor para suportá-los.  Quero objetos indiferentes no meu quarto. Poltronas de vime ou reproduções de Klinger. Ou produtos simpáticos de séculos passados, como as porcelanas de Meissen. Esses objetos não se imiscuem à minha existência. Um século os separa de mim.
Felizmente estamos agora livres dos velhos provérbios alemães. Mas e se os nossos campeões da arte aplicada viessem dizer: criem provérbios  modernos!?  Eu responderia: não, nenhum provérbio! Tampouco decoraria o meu quarto com desenhos satíricos. Não é o lugar deles.

Copenhagen produz também vasos de flor. “Vasos de flor” não é a expressão certa. Apenas “vasos” seria mais exato, pois produzem melhor efeito quando estão sem flores. Quero ter flores no meu quarto, mas elas não podem concorrer com os produtos refinadíssimos de Copenhagen. Um vaso comum as valoriza mais. Todo mundo sabe que os vasos de Copenhagen estão sempre vazios.

Acho que o tempo em que as pessoas desejavam com furor objetos inutilizáveis felizmente passou, canecas nas quais não se podia beber, martelos de sapateiro com os quais não se podia enfiar um prego. O homem moderno deve se desembaraçar do supérfluo. Outro dia acordei cheio de alegria. Sonhara que toda a fauna de Copenhagen padecia de raiva e havia sido devolvida ao fabricante.

Muitas pessoas acham que tenho bom gosto. Quando se tem esta reputação, as pessoas gostam de nos levar para ajudá-las a fazer compras. Assim uma senhora me pediu para acompanhá-la à Secessão. Ela queria um objeto para decorar o quarto sem se importar com o preço. No entanto ele não podia ocupar muito espaço. Eu a aconselhei a comprar um pequeno bloco de mármore de Rodin, um rosto gracioso que emergia com dificuldade da pedra. A senhora examinou a peça de todos os ângulos, cada vez mais embaraçada. Então perguntou: “Mas para que serve?”. Foi a minha vez de ficar embaraçado. Ela notou e disse:“ Veja, senhor Loos, o senhor está sempre contra Gurschner 3 e consortes. No entanto, sabemos o que querem. Posso acender fósforos nesta pedra? E mesmo se pudesse, onde os guardaria? Posso colocar uma vela? Podemos guardar a cinza?”

Foi o que disse: eles prostituem a arte.

Notas do tradutor:

1. Secessionistas: denominação dada aos artistas alemães e austríacos que se rebelaram contra a arte acadêmica dos Salões na última década do século XIX. Dentre eles, Max Lieberman, Frank von Stuck, Gustav Klimt, Kolo Moser e Josef Hoffmann.

2. Herman Bahrs: figura marcante da vida cultural vienense da época. Autor de romances, peças de teatro e ensaios críticos sobre arte e literatura.

3. Gustav Gurschner: prolífico artista art nouveau, criador de esculturas, cerâmicas, luminárias, objetos de bronze e medalhas.

Comentário de Gilberto Paim:

Os temas caros ao arquiteto austríaco Adolf Loos ( 1870-1933  ) estão presentes em “Cerâmica” com  humor e irreverência, porém de modo incisivo: a ênfase no despojamento e na funcionalidade; a separação rigorosa entre arte e objeto cotidiano, ou entre arte e design;a admiração pelo  trabalho do artesão moderno, pioneiro, segundo ele, na elaboração de um estilo simples e refinado, adequado ao  século vinte. Publicado em 1904, “Cerâmica” antecede em quatro anos o manifesto “Ornamento e Crime”, cujas afirmações bombásticas são freqüentemente citadas.

O “mestre artesão” de Loos é o ceramista que sonha com as cores que só podem ser obtidas por meio da queima; mas também, como podemos ler em outros de seus artigos, o marceneiro que realiza sob encomenda móveis funcionais de esmerada qualidade; o joalheiro que obtém o máximo efeito com o mínimo de ostentação material; o alfaiate que alcança por meio   do corte uma elegância sóbria e cosmopolita.   O “mestre artesão” de Loos é um profissional essencialmente urbano, muito experiente, capaz de dialogar de igual para igual com os seus clientes, senão de orientá-los em suas escolhas. As suas realizações surpreendentemente despojadas trouxeram para a trepidante vida moderna uma serenidade que é o seu perfeito complemento. A grande importância que as criações dos ”mestres artesãos” assumiram na reflexão de Loos, é, entretanto, pouco enfatizada pelos historiadores do design e da arquitetura.

A atenção e o respeito pelos materiais e técnicas do próprio ofício teriam permitido ao artesão moderno escapar mais facilmente da fantasmagoria ornamental que bloqueava a imaginação criadora dos desenhistas industriais e arquitetos. Além disso, a sua humildade profissional (“ um operário” ) o teria afastado da mais perigosa tentação “fin-de-siècle” segundo Loos: a anulação das fronteiras entre arte e objeto cotidiano – tentação novamente exacerbada na virada  para o século vinte e um, como observou Hal Foster no ensaio“ Design e Crime” que atualiza e amplifica algumas premissas do arquiteto austríaco.

Muito se fala atualmente sobre a aproximação entre design e artesanato. No entanto, a consistência de tal diálogo depende, em grande parte, de uma renovação na percepção dos artesanatos. Não pode haver maestria na atividade artesanal que não é genuinamente praticada como um ofício autônomo, e cuja história moderna não é reconhecida, seja a cerâmica, a vidro, a marcenaria, a tecelagem, a joalheria etc..  A ênfase de Loos na contribuição do “mestre artesão” para a elaboração de valores essenciais ao design do século vinte pode certamente enriquecer o debate atual. 
 

 


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