Ano: I Número: 2
ISSN: 1983-005X
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O ornamento na arquitetura
Louis Sullivan, 1892
Tradutor(a):Roberto Grey

Considero bastante evidente que um prédio quase sem ornamentos possa transmitir uma impressão de nobreza e dignidade apenas em virtude do volume e da proporção. Para mim, não é evidente que o ornamento possa, intrinsicamente, acentuar essas qualidades básicas. Por que, então, deveríamos utilizar o ornamento? A dignidade nobre e simples não bastaria? Por que haveríamos de exigir mais?

Respondo a esta pergunta de modo completamente sincero, dizendo que lucraríamos bastante, esteticamente, se evitássemos inteiramente a utilização do ornamento durante os próximos anos, para que pudéssemos nos concentrar de modo intenso na produção de prédios belos e bem proporcionados, quando desnudos. Talvez evitássemos assim muitas coisas indesejáveis, aprendendo por contraste a eficácia de se pensar de modo natural, vigoroso, íntegro. Dado este passo, poderemos indagar com segurança até que ponto a utilização decorativa do ornamento realçaria a beleza de nossas estruturas — que novo encanto lhes emprestaria.

Quando as formas puras e simples estiverem bem implantadas poderemos revertê-las; nós nos refrearemos instintivamente do vandalismo, pouco inclinados a fazer alguma coisa que torne essas formas menos puras, menos nobres. Teremos aprendido, contudo, que o ornamento é um luxo mental, não uma necessidade, pois teremos compreendido o inestimável valor dos volumes não ornamentados assim como as suas limitações. Possuímos o romantismo dentro de nós, e sentimos um enorme desejo de expressá-lo. Sentimos intuitivamente que nossas formas simples, fortes e atléticas, portarão com facilidade a indumentária com a qual sonhamos. Cobertos pela roupagem da nossa imaginação poética, nossos prédios, meio escondidos pelos melhores produtos dos teares e das minas, surgirão com vigor e atração redobrados, como uma melodia sonora acompanhada de vozes harmoniosas.

Acho que um verdadeiro artista pensará basicamente desta maneira; e que no auge dos seus poderes ele poderá concretizar esse ideal. Acredito que o ornamento arquitetônico realizado nesse espírito é desejável, porque belo e inspirador; e que o ornamento realizado sem as mesmas preocupações carece dessas possibilidades elevadas.

O que equivale a dizer, um prédio que é uma verdadeira obra de arte ( e não considero nenhum outro ) é, na sua natureza, essência e matéria, uma expressão emocional. Sendo assim, e eu sinto profundamente que é assim, ele deve ser dotado, quase literalmente, de vida. Segue-se desse princípio vital que uma estrutura ornamentada deveria se caracterizar por esta qualidade, ou seja, que o mesmo impulso emocional deve fluir harmoniosamente através de suas várias formas de expressão — nas quais, quando a composição dos volumes é mais elaborada, a ornamentação decorativa é mais intensa. Não obstante, ambas devem brotar da mesma fonte de sentimentos.

Estou ciente que um prédio decorado, projetado segundo este princípio, exigirá de seu criador uma tensão emocional intensa e contínua, uma unidade orgânica de idéias e propósitos, mantida até o fim. A obra completa há de revelá-lo; e se ela for projetada com sentimentos suficientemente profundos e clareza conceitual, tão mais ardorosa tenha sido sua concepção, mais serena e nobre ela permanecerá para sempre como um monumento à eloqüência humana. É esta qualidade que caracteriza os grandes monumentos do passado. É esta certeza que descortina um panorama rumo ao futuro.

No meu modo de pensar, entretanto, a composição dos volumes e o sistema decorativo da estrutura deveriam ser separáveis apenas em teoria e no intuito de estudá-los analiticamente. Acredito, como disse, que um prédio belo e excelente pode ser projetado sem ornamento de nenhum tipo; porém acredito com a mesma firmeza que uma estrutura decorada, harmoniosamente concebida, bem refletida, não pode ser despida de seu sistema ornamental sem que a sua individualidade seja destruída.

Tem sido moda falar do ornamento, sem talvez demasiada leviandade conceitual, como algo a ser colocado ou omitido, conforme seja o caso. Afirmo o contrário — que a presença ou a ausência do ornamento deveriam ser, sobretudo numa obra séria, determinadas desde o início do projeto. Esta talvez seja uma insistência tenaz, no entanto justifico-a e recomendo-a com base no fato da arquitetura criativa ser uma arte tão elevada, que o seu poder se manifesta em ritmos de grande sutileza, assim como os da arte musical, seu parente mais próximo.

Se quisermos, portanto, que nossos ritmos artísticos — o resultado — sejam significativos, é preciso que nossas reflexões prévias — a causa — também o sejam. A inclinação prévia da mente importa muitíssimo, tanto quanto, na verdade, a inclinação do canhão no momento do tiro.

Se presumirmos que nosso prédio em questão não precisa ser uma obra de arte viva, ou pelo menos uma tentativa nesse sentido, que nossa civilização ainda não o exige, minha súplica é inútil. Só posso prosseguir na suposição de que a nossa cultura progrediu até o estágio em que a arte que se nutre da imitação ou lembrança não satisfaz inteiramente, e que existe de fato um desejo de expressão espontânea. Presumo também que devemos começar, não por fechar olhos e ouvidos ao passado indescritível, mas ao contrário, abrindo nossos corações, com simpatia esclarecida e atenção respeitosa, à voz da nossa época.

Nem acho que este seja o lugar e o momento de indagar se existe realmente uma arte criativa — se uma análise contundente não revelaria o grande artista, não como criador, mas como intérprete e profeta. Quando o luxo dessa indagação se tornar uma verdadeira necessidade, nossa arquitetura terá se aproximado do seu desenvolvimento final. Será então suficiente dizer o que uma obra de arte elevada significa realmente para mim: uma coisa fabricada, mais ou menos atraente, percebida parcialmente pelo eventual observador, nenhum observador sendo capaz de perceber tudo o que contém.

Devo esclarecer que um desenho ornamental é mais belo quando parece fazer parte da superfície ou da substância que o recebe, ao invés de, por assim dizer, dar a impressão de ter sido "colado". Um pouco de observação nos leva a perceber que no primeiro caso existe uma simpatia toda especial entre o ornamento e a estrutura, ausente no segundo. Tanto a estrutura quanto o ornamento obviamente se beneficiam dessa simpatia, valorizando-se mutuamente. Aí está a base preparatória daquilo que chamamos sistema orgânico de ornamentação.

O ornamento pode ser realizado de inúmeras maneiras, porém depois de pronto deve dar a impressão de ter brotado, graças ao trabalho de alguma instância benfazeja, da própria substância do material, e de estar ali por direito, assim como a flor que desponta entre as folhas de sua planta mãe.

Através desse método, opera-se uma espécie de contato, e o espírito que anima a massa está livre para fluir no ornamento — não são mais duas, mas uma única coisa.

Se nos permitimos observar atentamente, torna-se evidente que para alcançar uma verdadeira unidade poética, o ornamento deve dar a impressão, não de algo que recebe o espírito da estrutura, e sim de algo que exprime esse espírito em virtude do crescimento diferencial.

Segue-se, então, pela lógica do crescimento, que determinado tipo de ornamento deveria aparecer sobre um determinado tipo de estrutura, assim como um certo tipo de folha deve aparecer num certo tipo de árvore. Uma folha de olmo não "ficaria bem" num pinheiro — a sua folhagem natural veio mesmo "a calhar". Por isso, um ornamento ou projeto de decoração orgânica apropriado a uma estrutura composta de linhas amplas e majestosas, não teria afinidades com uma outra estrutura mais delicada e frágil. Os sistemas ornamentais de diferentes prédios não deveriam ser intercambiáveis. Pois os prédios deveriam possuir uma individualidade tão marcante quanto os homens, tornando-os acentuadamente diferentes entre si, por mais fortes que sejam as semelhanças familiares ou raciais.

Todo mundo sabe o quanto a voz de cada homem é fortemente individual, mas poucos param para pensar que uma voz, de outro tipo, fala através de cada prédio existente. Qual o caráter dessas vozes? São ásperas ou suaves, nobres ou ignóbeis? A fala que pronunciam é prosa ou poesia?

A mera diferença na forma externa não constitui a individualidade. Para isso é necessário um caráter interno harmonioso; e assim como falamos da natureza humana, por analogia podemos aplicar uma expressão semelhante aos prédios.

Um pouco de estudo logo nos permite discernir e apreciar as mais óbvias características individuais dos prédios; mais estudo e o cotejo das impressões revelam formas e qualidades inicialmente ocultas; uma análise mais profunda traz uma grande variedade de novas sensações, provocadas por qualidades até então insuspeitas — encontramos evidências do dom da expressão, e sentimos a sua importância; as gratificações mentais e emocionais provocadas por estas descobertas levam a uma busca cada vez mais aprofundada até que, nas grandes obras, aprendemos plenamente que o óbvio era o menos importante, e aquilo que estava escondido, quase tudo.

Poucas obras passam por um exame atento, frio — rapidamente são esvaziadas. Porém nenhuma análise, não importa quão simpática, persistente ou profunda, pode esgotar uma grande e autêntica obra de arte. As qualidades que a tornam tão grande não são apenas mentais, porém espirituais, significando portanto a mais elevada expressão e encarnação da individualidade.

Ora, se esta qualidade espiritual e emocional é um nobre atributo quando reside na massa do prédio, deverá, quando aplicada a um esquema viril e sintético de ornamentação, elevá-la de imediato do nivel de banalidade, aos cumes da expressão dramática.

As possibilidades da ornamentação, assim consideradas, são maravilhosas; e diante de nós se descortinam tal como um panorama, conceitos tão ricos, tão variados, tão poéticos, que a mente hesita no seu vôo e a vida parece de fato não ser mais que um breve espaço de tempo.

Que a luz desse conceito reflita livre e plenamente sobre as considerações interligadas de volume e composição. Como é grave, como é eloquente, como é estimulante essa fantasia, como é nobre a força dramática que tornará sublime nossa arquitetura do futuro !

A América é a única terra no mundo onde um sonho assim poderá ser realizado; pois apenas aqui a tradição não traz algemas, a alma humana é livre para se desenvolver, para amadurecer e buscar seus semelhantes.

Mas para isso precisamos voltar de novo à Natureza, e escutar sua voz melodiosa, e aprender, como aprendem as crianças, a tônica de suas cadências rítmicas. Precisamos encarar com ambição o nascer do sol, e com tristeza o crepúsculo; então, quando os nossos olhos tiverem aprendido a ver, saberemos como é grandiosa a simplicidade da natureza, e que ela produz serenamente tantas variações infinitas. Aprenderemos com isso a ponderar sobre o homem e suas particularidades, de modo a contemplar o desabrochar da alma em toda sua beleza, e a constatar que a fragrância de uma arte viva irá pairar de novo sobre o jardim do nosso mundo.

Louis Sullivan, Kindergarten Chats and Other Writings, New York: Wittenborn Art Books, 1968.

Fotos de Mary Ann Sullivan, Digital Imaging Project, Bluffton University:
http://www.bluffton.edu/~sullivanm/iowa/grinnell/sullivan.html

Comentário de Gilberto Paim:

Assim como o manifesto anti-ornamentalista do arquiteto austríaco Adolf Loos,  Ornamento e Crime, de 1908, o ensaio do arquiteto norte-americano Louis Henri Sullivan é muito citado e pouco lido. O trecho mais freqüentemente citado do ensaio é aquele, no segundo parágrafo, em que Sullivan propõe a suspensão provisória do ornamento. Esta passagem isolada pode sugerir uma condenação do ornamento. No entanto, a leitura integral do ensaio revela as nuances da reflexão de Sullivan. Não há, segundo ele, apenas uma modalidade ornamental. Ele estabelece uma distinção fundamental entre a mera aplicação de ornamentos sobre a fachada dos prédios e o "sistema orgânico de ornamentação". A condenação de Sullivan limitava-se apenas à primeira modalidade, muito comum no século dezenove, e que consistia na aplicação de ornamentos de outros períodos históricos, freqüentemente misturados, e sem maiores considerações sobre a sua adequação à estrutura, aos materiais utilizados, e à finalidade social ou simbólica da construção. Sullivan considerava a abstenção temporária dessa modalidade ornamental como uma ascese indispensável à reeducação do olhar. Num futuro próximo, a ornamentação como uma genuína forma de arte teria nova chance de prosperar. A riqueza e a complexidade das formas ornamentais seriam novamente bem-vindas pois estariam intimamente associadas ao projeto arquitetônico desde a sua concepção. O ornamento surgiria do mesmo "grão de semente" , gerador do prédio.

A ornamentação orgânica de Sullivan não se confunde absolutamente com o despojamento modernista. A ascese proposta por ele era um meio indispensável, mas apenas um meio, não o objetivo final. Para Sullivan a arte do ornamento acompanha as soluções práticas e funcionais da arquitetura, mas vai além, tornando-se imagem e expressão das infinitas possibilidades criativas do homem. Inspirado na estética transcendental de Emerson, Sullivan interpretou a multiplicidade de linhas, encadeamentos e desdobramentos da arte ornamental como uma manifestação privilegiada do " Espírito Criador Infinito" .

Estão presentes no ensaio de Sullivan os temas fundamentais da discussão moderna sobre o ornamento : a analogia entre ritmo ornamental e musical; a ornamentação que evita copiar as formas naturais mas que manifesta a força e o dinamismo da natureza; a superação das formas ornamentais previamente repertoriadas; a beleza do desnudamento e a integração dos ornamentos às superfícies arquitetônicas como se fosse uma pele. Sullivan tem a sua própria resposta à questão da eliminação progressiva dos ornamentos: ela é possível apenas em alguns casos. As exigências racionais não devem esvaziar o manancial criativo que o ornamento representa para o homem.

Nos últimos anos de sua vida, Sullivan realizou o deslumbrante Tratado de Ornamentação Arquitetônica, no qual texto e imagem esclarecem sobre os fundamentos filosóficos da ornamentação orgânica. Os desenhos ornamentais extraordinariamente complexos feitos por Sullivan cristalizavam algumas dentre as múltiplas possibilidades de germinação e florescimento do "grão de semente" (1) que guarda as inesgotáveis possibilidades criativas do homem e da natureza. A influência das idéias de Sullivan não pode ser menosprezada. Elas foram decisivas para o florescimento da obra de seu mais famoso discípulo, o arquiteto Frank Lloyd Wright, para quem " o ornamento jamais deve ser aplicado à arquitetura do mesmo modo que a arquitetura jamais deve ser aplicada à decoração. O ornamento que não participa da natureza da arquitetura como uma parte orgânica dessa expressão, viola todo o conjunto não importando quão belo ele seja em si mesmo." (2)

(1) Louis Sullivan, A System of Architectural Ornament According with a Philosophy of Man´s Powers ( 1924 ), The Eakins Press, Nova York, 1967.

(2) Frank Lloyd Wright,  "Modern Architecture", Collected Writings, vol. 2. Organizado por Bruce Brooks Pfeiffer, Rizzoli, Nova York, 1992.

Gilberto Paim é ceramista e pesquisador sobre design e arte aplicada; autor de A Beleza sob Suspeita, o Ornamento em Ruskin, Lloyd Wright,  Loos, Le Corbusier e outros, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, co-editor de Agitprop.

 


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