Ano: IV Número: 45
ISSN: 1983-005X
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História de um pobre homem rico
Adolf Loos, 1900
Tradutor(a):Gilberto Paim

Quero lhes contar a história de um pobre homem rico. Tinha bens e dinheiro, uma esposa que o amava e afastava de seu espírito as preocupações com negócios, além de uma porção de filhos que seus operários invejavam. Os amigos o amavam, pois tinha sucesso em tudo que empreendia. Hoje está bem mudado. Eis a razão:

Um dia esse homem disse a si mesmo: “Você tem bens e dinheiro, uma esposa amada e filhos que todos seus operários invejam. Mas é feliz? Preste atenção: muitos homens não têm todas as coisas pelas quais você é invejado. Mas uma grande fada dissipa as preocupações deles, uma fada chamada Arte. Mas o que é arte para você? Você nem sabe....Seu empregado abre as portas para qualquer pretensioso que lhe entrega o cartão de visitas. No entanto, você ainda não recebeu a Arte em sua casa...Sei muito bem que ela não virá sozinha, prosseguiu o homem. Ela entrará em minha casa como uma rainha e viverá ao meu lado.”

Era um homem decidido, que tudo realizava com energia. No mesmo dia foi ao escritório de um arquiteto de renome e lhe disse: “Introduza arte em minha casa. Despesas não importam”.

O arquiteto não se fez de rogado. Foi ao apartamento do rico, expulsou todos os móveis, e fez entrar um exército de especialistas em assoalho, laqueadores, marceneiros, carpinteiros, instaladores, ceramistas, tapeceiros, pintores e escultores, de modo que a arte foi logo capturada e aprisionada entre as quatro paredes do cliente.

Ele nadava em felicidade. Cheio de alegria, percorreu o apartamento reformado. A arte estava presente em todos os cantos. Ele tocava arte quando segurava a maçaneta, sentava em arte quando se acomodava na poltrona, afundava em arte quando sua cabeça cansada dormia sobre a almofada, seu pé penetrava a arte quando roçava o tapete. Ele rolava em arte com extraordinário entusiasmo. Desde que o seu prato estava ornamentado, ele cortava o boeuf à l´oignon com muito mais energia.

Era elogiado e invejado. As revistas de arte o celebravam como um importante mecenas, cujos cômodos foram reproduzidos, explicados e comentados como modelos de bom gosto.

E mereciam a honraria. Cada cômodo oferecia uma sinfonia auto-suficiente de cores. Paredes, móveis e tecidos se harmonizavam do modo sutil. Cada objeto tinha seu lugar determinado e estava ligado aos outros segundo notáveis combinações.

O arquiteto não se esqueceu de absolutamente nada. Cinzeiros, talheres, interruptores, tudo foi fabricado por ele. Ele não lançou mão das práticas usuais dos arquitetos; cada ornamento, cada forma, cada rebite exprimia a personalidade do proprietário (trabalho psicológico reconhecidamente árduo).

O arquiteto, porém, declinava os elogios com modéstia. “Não, dizia ele, os cômodos não são inteiramente meus. Ali, naquele canto, há uma estátua de Charpentier. E, assim como  não toleraria que alguém apresentasse um cômodo como sendo obra sua se tivesse incluído apenas uma de minhas maçanetas de porta, não poderia apresentar esse cômodo como de minha propriedade artística”. Isso sim era falar com nobreza e lógica. Mais de um marceneiro que decorou quartos com tapeçarias de Walter Crane, atribuindo a si mesmo toda a autoria embora tenha concebido e executado apenas móveis, ruborizou até as profundezas da alma ao tomar conhecimento dessas palavras.

Mas voltemos ao nosso rico proprietário. Já disse como estava feliz. Ele passou a consagrar grande parte do tempo ao estudo de sua residência, pois, com logo percebeu, tinha muito a aprender. Em primeiro lugar, precisava prestar atenção a muitas coisas. Cada objeto tinha um lugar determinado. O arquiteto teve excelentes intenções. Pensara em tudo. Previra um lugar para a menor caixa, lugar feito justamente para ela.

O apartamento era confortável, mas gerava grande cansaço mental. Eis porque algumas semanas após a instalação, o arquiteto cuidou de perto para que nenhum erro fosse cometido. O rico tomava muito cuidado, mas lhe acontecia, porém, de colocar um livro na gaveta prevista para os jornais. Ou deixar cair cinza de charuto num buraco da mesa destinado a uma luminária. Depois de segurar um objeto, precisava procurar muito até adivinhar seu verdadeiro lugar. Algumas vezes o arquiteto precisava recorrer à planta para achar a localização correta de uma caixa de fósforos.

Onde a arte aplicada celebrava seu triunfo, a música aplicada não podia ficar de fora. Essa ideia preocupava muito nosso homem. Ele solicitou à empresa de bondes que substituísse algumas campainhas pelo tema dos sinos de Parsifal. Ficou frustrado, pois a empresa não estava suficientemente familiarizada com as ideias modernas. Entretanto, obteve autorização para pavimentar com seu próprio dinheiro a rua em frente à casa, obrigando todos os caminhões a passar ao ritmo da marcha de Radetzky. As campainhas do apartamento tilintavam ao som de temas musicais de Wagner e Beethoven. Os críticos convidados não poupavam elogios ao homem que abriu um novo campo para “a arte aplicada aos objetos de uso corrente”.

Vocês certamente acham que tantas melhorias aumentaram incessantemente a felicidade do nosso homem.

A verdade nos obriga a dizer que ele ficava em casa o mínimo de tempo possível. O que vocês querem? De vez em quando é preciso descansar de tal quantidade de arte. Vocês teriam coragem de morar uma galeria de pinturas? Ou de assistir a Tristão e Isolda durante meses?Vejam bem... Quem ousaria recriminá-lo por renovar as energias num café, num restaurante ou na companhia dos amigos? Ele não achava que as coisas aconteceriam assim. Mas a arte exige sacrifícios. E ele já havia consentido a muitos. Seus olhos lacrimejavam com esse pensamento. Pensava em tantas coisas velhas, que havia amado e que às vezes lhe faziam falta. A grande poltrona na qual seu pai fazia a sesta após o almoço, o velho pêndulo, os quadros... Mas, dizia a si mesmo, a Arte é quem manda; é preciso ficar firme.

Num aniversário lhe aconteceu de ganhar muitos presentes da mulher e filhos, que lhe deixaram muito feliz. Logo em seguida, o arquiteto veio lhe visitar para pensarem juntos sobre o que era mais conveniente fazer com os presentes. Assim que o arquiteto entrou no cômodo, o dono da casa foi alegremente ao seu encontro, precisando abrir seu coração. Mas o arquiteto nem percebeu sua alegria, pois acabava de descobrir algo que o fez empalidecer:

- O que significam esses pantuflas?

O dono da casa olhou as pantuflas bordadas e respirou aliviado. Desta vez, era totalmente inocente, pois as pantuflas haviam sido executadas segundo indicações do próprio arquiteto. Eis porque respondeu despreocupadamente:

- O senhor arquiteto teria esquecido das pantuflas  que desenhou? 

- Eu sei, exclamou o arquiteto, mas elas são para o quarto de dormir. Essas duas manchas de cor completamente deslocadas destroem toda a atmosfera. Você não compreende isso?

O proprietário reconheceu o erro. Retirou imediatamente as pantuflas, feliz porque o arquiteto não julgou impróprias suas meias. Foram para o quarto onde o proprietário pôde calçar novamente as pantuflas.

- Ontem, iniciou com voz hesitante, foi meu aniversário. Minha família me cobriu literalmente de presentes. Pedi que viesse, meu caro arquiteto, para lhe pedir um conselho. Como arrumaremos essas coisas de modo mais satisfatório?

A figura do arquiteto se deitou. Depois exclamou:

- Como você pode receber presentes? Já não desenhei tudo para você? Já não pensei em tudo? Você não precisa de mais nada. Está completo.

- Porém, ousou responder o proprietário, tenho ainda assim o direito de comprar uma coisa ou outra?

- Não, você não tem esse direito! Nunca, sob nenhum pretexto! Só faltava essa! Coisas que não foram desenhadas por mim... Já não fiz concessão suficiente autorizando a estátua de Charpentier? Essa estátua que tira toda a glória do meu trabalho! Não, não você não tem o direito de comprar mais nada.

- Mas, se meu neto, que vai para o jardim de infância, me der de presente um pequeno trabalho de sua composição?

- Você não tem o direito de aceitá-lo!

O proprietário ficou arrasado. Porém, nem tudo estava perdido. Uma ideia lhe veio à mente:

- E se eu quiser comprar um quadro da Secessão? – perguntou triunfalmente.

- Então vai precisar achar um canto para pendurá-lo! Você não vê que não há lugar para mais nada? Não vê que para cada uma das pinturas que fixei às paredes, há um enquadramento apropriado? Você não pode mudar a posição de nenhum quadro. Quanto mais introduzir mais um...

Desde esse dia uma mudança se operou na alma do rico. Sua felicidade se foi, ele se sentiu subitamente muitíssimo infeliz. Vislumbrou sua existência futura. Ninguém tinha mais o direito de lhe dar prazer. Deveria passar diante das vitrines das lojas sem ousar formular o menor desejo. Nada mais seria fabricado para ele. Nenhum de seus familiares tinha o direito de lhe oferecer seu retrato. Para ele não existiam mais artistas ou artesãos. Estava excluído da vida nascente, de seu futuro, de suas aspirações. Tinha de passear com o próprio cadáver. Sim, estava acabado, estava completo...

Sobre o Autor(a):

Adolf Loos (1870-1933) nasceu em Brno, na República Checa, mas passou boa parte de sua vida na Áustria.  Dentre seus trabalhos, destacam-se as moradias Steiner (1910) e Michaelplatz (1910-1911), em Viena, a residência Tzara, em Paris e o projeto para o Chicago Tribune, realizado em 1922.

Para além dos projetos de arquitetura, desenvolveu uma importante obra teórica, formada por conferências, artigos e pequenos ensaios que publicava regularmente desde 1897.

Em 1908, escreveu o ensaio/manifesto intitulado "Ornamento e Crime", no qual criticava o uso abusivo da ornamentação na arquitetura europeia do final do século XIX.

Coerção ornamental

Gilberto Paim

O arquiteto Adolf Loos (1870-1933) travou verdadeira batalha contra o ornamento, publicando inúmeros artigos que foram decisivos para a auto-definição do modernismo. Loos esteve atento às diversas manobras decorativas na arquitetura, mobiliário, vestuário, utensílios, carros de luxo, assim como na linguagem, hábitos de higiene e regras de polidez. Procurou alertar seus contemporâneos sobre os focos de ornamentação num mundo cuja modernidade dependia, segundo ele, sobretudo de sua determinação em expulsá-los. Considerava sua produção crítica tão importante quanto suas atividades como “instalador de ambientes” (como denominava sua atividade de decorador) e arquiteto.

Segundo ele, o princípio do revestimento deveria substituir algumas práticas ornamentais bastante difundidas em seu tempo. Enquanto os ornamentos procuravam enganar quanto aos materiais de que eram feitos, ou quanto à estrutura que os sustentava, os revestimentos não pretendiam esconder ou simular coisa alguma, mas contribuir com a sua própria beleza para a harmonia do conjunto. Reconhecia nas placas de materiais nobres, como a pedra e a madeira, uma presença ao tempo rica e austera, mais próxima da sensibilidade moderna. Considerava essencial escolher adequadamente a forração dos diversos ambientes: o calor da madeira para a sala de estar, a exuberância do mármore para o hall imponente, e, eventualmente, a sensualidade das peles de animais para o quarto do casal. O despojamento radical de suas fachadas contrasta com o aspecto aconchegante de seus interiores.

Loos introduziu no debate moderno uma ideia paradoxal: embora os revestimentos de materiais naturais fossem tradicionalmente portadores de beleza, não deveriam ser incluídos na categoria de ornamentos, pois nada deviam ao decadentismo da decoração. 

Os ornamentos eram, para ele, tão intoleráveis do ponto de vista moral quanto estético, pois resistiam às aspirações modernas de autonomia e liberdade. Sua realização dependia de várias formas de submissão: do artesão ao arquiteto ou ao artista; dos materiais aos desenhos realizados nas pranchetas ou escolhidos nos álbuns ornamentais; das necessidades do presente às formas do passado; da vida familiar às determinações do arquiteto e do decorador.

Nesse breve conto, sua única e mordaz incursão ao terreno ficcional, que data de 1900, Loos aborda a submissão de um rico e poderoso empresário às determinações e caprichos do arquiteto/decorador que transforma sua residência em “obra de arte total”, ambição partilhada internacionalmente por Josef Hoffmann, Henry van de Velde e C. R. Mackintosh, entre as últimas décadas do século dezenove e as primeiras do século vinte.  Ele era firmemente contrário à aproximação demasiado estreita entre arte e design, assim como à supremacia dos valores estéticos na composição dos interiores. Sob nenhum pretexto, móveis e objetos tinham o direito de constranger e aprisionar a vida cotidiana.

 

Tradução e comentário publicados originalmente na revista Noz 4.

 


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