Ano: V Número: 49
ISSN: 1983-005X
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Funcionalismo hoje
Theodor Adorno
Tradutor(a):Silke Kapp

Assim como sou grato pela confiança que Adolf Arndt depositou em mim com o seu convite, são sérias as minhas dúvidas sobre se tenho o direito de falar aos senhores (1). Metier, conhecimento em questões técnicas ou ligadas ao ofício contam muito no seu meio, e com razão. Se há uma ideia que persistiu no movimento do Werkbund (2), é exatamente a da competência concreta, oposta à estética desenfreada e estranha ao material em que atua.

Devido ao meu próprio metier, a música, essa exigência é evidente para mim, graças a uma escola que tinha relações pessoais próximas tanto com Adolf Loos, quanto com a Bauhaus, e que em muitos aspectos considerava a si mesma espiritualmente afim aos esforços por objetividade [Sachlichkeit] (3).

Mas não posso pretender a menor competência em questões arquitetônicas. Se, ainda assim, não resisti à tentação e me exponho ao risco de ser apenas tolerado e posto de lado pelos senhores como um diletante, eu talvez possa recorrer, ao lado do prazer que é para mim expor-lhes algumas reflexões, à opinião de Adolf Loos de que uma obra de arte não precisa contentar a ninguém, enquanto que a casa tem responsabilidades para com todos*.

Não sei se essa frase é correta, mas não preciso ser mais papal do que o papa. O mal-estar que sinto diante do estilo de reconstrução alemão e que certamente muitos dos senhores compartilham, instiga a mim, que não sou menos sujeito à imagem de tais construções do que um especialista, a perguntar pela causa. Os elementos comuns entre arquitetura e música já foram discutidos há muito tempo e em frases repetidas à exaustão [105].

Unindo isso que vejo com o que sei das dificuldades da música, eu talvez não me comporte de modo tão arbitrário como seria de se esperar segundo as regras da divisão do trabalho. Mas preciso tomar uma distância maior do que aquela que, com todo direito, os senhores esperam. No entanto, não me parece totalmente excluída a possibilidade de que, de vez em quando - em situações latentes de crise -, haja algo de bom em afastar-se dos fenômenos mais do que o pathos do conhecimento técnico quer permitir.

A adequação aos materiais tem a divisão do trabalho por fundamento; mas isso torna aconselhável, também para o especialista, uma prestação esporádica de contas do quanto seu saber especializado sofre com a divisão do trabalho; o quanto a ingenuidade artística, da qual se precisa, pode transformar-se em sua própria barreira.

Tomemos por pressuposto que o movimento anti-ornamental atingiu também as artes não utilitárias (4). Está na natureza das obras de arte perguntar pelo que lhes é necessário e reagir contra o supérfluo. Depois que a tradição deixou de fornecer às artes um cânone do certo e do errado, tal reflexão é imputada a toda obra individualmente. Cada qual deve examinar-se a si mesma com respeito à sua lógica imanente, não importando se essa é movida por um fim externo ou não.

Isso de modo nenhum constitui uma postura nova. Mozart, certamente um portador e executor crítico de uma grande tradição, depois da estreia de 'Entführung' respondeu à censura sutil de um poderoso – ‘mas quantas notas, meu caro Mozart’ - com as palavras: ‘nenhuma única nota além do necessário, majestade’. Com a fórmula da finalidade sem fim como um momento do juízo de gosto, Kant registrou essa norma filosoficamente na Crítica do Juízo (5).

Porém ela guarda uma dinâmica histórica; aquilo que na linguagem dada de um certo meio material ainda aparece como necessário, torna-se supérfluo, de fato ornamental no mau sentido, assim que deixa de legitimar-se naquela linguagem, naquilo que normalmente é chamado de estilo. [106]

O que ontem era funcional pode tornar-se o oposto. Loos percebeu perfeitamente essa dinâmica histórica no conceito do ornamento. Até mesmo os elementos representativos, luxuosos, voluptuosos e como que adicionados à força podem ser necessários - e não forçados - em alguns tipos de arte, pelo seu próprio princípio. Condenar o barroco por isso seria medíocre [banausisch] (6). A crítica do ornamento equivale à crítica daquilo que perdeu o seu sentido funcional e simbólico e que resta como algo de venenoso, algo de orgânico em putrefação.

Toda a arte nova opõe-se a isso: ao caráter fictício do romantismo depravado, ao ornamento que apenas evoca a si mesmo embaraçosa e impotentemente. Ornamentos desse gênero foram expulsos da música nova, organizada apenas a partir da expressão e da construção, tão rigorosamente quanto da arquitetura. As inovações compositivas de Schönberg, a querela literária de Karl Kraus (7) contra o fraseado jornalístico e a denúncia do ornamento por Adolf Loos não são vagas analogias histórico-culturais; elas refletem precisamente a mesma intenção.

Isso leva a uma correção da tese de Loos que ele, generoso como era, certamente não teria rejeitado: a questão do funcionalismo não coincide com a questão da função prática. As artes utilitárias e não utilitárias não formam a oposição radical que ele supunha. A diferença entre o necessário e o supérfluo inere aos construtos, e não se resume à sua referência a algo que lhes é exterior ou à ausência dessa referência.

No pensamento de Loos e nos primeiros tempos do funcionalismo, o utilitário e o esteticamente autônomo são separados um do outro por decreto. Essa separação, a partir da qual a reflexão deve agora recomeçar, foi fruto da polêmica em torno das artes aplicadas [Kunstgewerbe] (8). O pensamento de Loos amadureceu durante os tempos áureos dessas artes e delas se desvencilhou, como que situado historicamente entre Peter Altenberg e Le Corbusier (9). [107]

O movimento das artes aplicadas começara com Ruskin e Morris. Rebelando-se contra a deformidade de formas produzidas em série e ao mesmo tempo pseudo-individualizadas, o movimento sazonou conceitos como vontade estilística, estilização, elaboração formal e a ideia de que se deve empregar a arte, trazer a arte à vida a fim de curá-la, e divisas semelhantes que estivessem na ordem do dia.

Loos sentiu cedo o quanto tais empreitadas são questionáveis: aos objetos de uso sucede injustiça assim que são adicionados de algo não exigido pelo seu uso; à arte, o intrépido protesto contra o domínio dos fins sobre os homens, sucede injustiça quando ela é reduzida exatamente àquela práxis a que se opõe.

Nas palavras de Hölderlin: “Denn nimmer von nun an / taugt zum Gebrauch das Heilige” (10). A “artificação” anti-artística das coisas práticas foi tão repugnante, quanto a orientação da arte não utilitária por uma práxis que acabaria submetendo-a ao domínio universal do lucro, contra o qual até os esforços das artes aplicadas eram dirigidos, ao menos no início.

Em contrapartida, Loos pregava o retorno ao ofício sadio, que utiliza as inovações técnicas sem tomar as suas formas emprestadas da arte. Mas os seus pleitos padecem pela antítese demasiadamente simples. O elemento restaurativo que eles contêm, à semelhança da individualização via artes aplicadas, tornou-se evidente; as discussões sobre a objetividade [Sachlichkeit] o arrastam consigo até hoje.

O utilitário e o não utilitário nos construtos não são separáveis entre si de maneira absoluta, porque estão historicamente imbricados. Aliás, os ornamentos que Loos exilava com uma fúria estranhamente contrastante com sua humanidade são muitas vezes cicatrizes, nas coisas, de modos ultrapassados de produção. Inversamente, fins como a sociabilidade, a dança, o entretenimento imigraram na arte não utilitária, para depois submergirem na sua lei formal. A finalidade sem fim é a sublimação de fins. [108]

Não existe objeto estético em si, mas apenas enquanto campo de tensão de tal sublimação. Por isso, também não existe funcionalidade quimicamente pura como o contrário do estético. Mesmo as formas utilitárias mais puras se alimentam de representações como transparência e simplicidade formais, oriundas da experiência artística; nenhuma forma é inteiramente extraída de sua função.

Não dispensa ironia o fato de que numa obra revolucionária de Schönberg – a Primeira Sinfonia de Câmara, à qual Loos dedicou as mais veementes palavras - apareça um tema de caráter ornamental, com uma síncope que lembra um dos motivos principais da 'Götterdämmerung' e um tema da primeira frase da sétima sinfonia de Bruckner. O ornamento é a invenção sustentante, se se quiser, objetivo por sua vez. Exatamente esse tema de transição torna-se modelo de uma execução canônica em contraponto quádruplo, o primeiro complexo radicalmente construtivista da nova música.

A própria crença num material enquanto tal veio das artes aplicadas, com sua religião das matérias-primas pretensamente nobres. Essa crença ainda ronda a arte autônoma constantemente. Dela derivou-se a ideia da construção adequada ao material. Mas a ela corresponde um conceito de beleza a-dialético, que faz da arte autônoma um cerrado parque ecológico.

Se o ódio de Loos ao ornamento fosse consequente, deveria estender-se a toda arte. Uma vez chegada ao ponto da autonomia, essa não consegue livrar-se completamente de incidências ornamentais porque, segundo os critérios do mundo prático, sua própria existência seria ornamental.

Loos, para a sua honra, rechaça essa consequência; aliás, de modo semelhante aos positivistas. Eles querem expulsar da filosofia o que nela lhes parece poesia, mas não sentem a própria poesia como prejuízo para o seu tipo de positividade. Ao invés disso, eles toleram a poesia neutralizada e intacta num território especial, pois, de um modo geral, afrouxaram a noção de verdade objetiva.

[109] A crença de que o material carregue em si mesmo a sua forma adequada pressupõe que, enquanto material, ele já esteja munido de sentido, como ocorria outrora com a estética simbolista. A resistência contra as monstruosidades das artes aplicadas de modo algum cabe apenas às formas emprestadas; ela cabe sim ao culto dos materiais, que os envolve com uma aura de essência.

Loos expressou exatamente essa noção na sua crítica do batique (11). Os materiais artificiais inventados desde então - materiais de origem industrial - não permitem mais a confiança arcaica em sua beleza inata, esse rudimento da magia de pedras preciosas.

Por fim, a crise das evoluções mais recentes da arte autônoma mostra que uma organização significativa não pode ser extraída do material em si e quão facilmente essa tentativa se aproxima da produção de curiosidades vazias.

A ideia da adequação ao material na arte utilitária não permanece indiferente a tais experiências críticas. O aspecto ilusório da funcionalidade como fim em si mesma revela-se à mais simples reflexão social. Funcional, aqui e agora, seria apenas o que é na sociedade presente. Mas a essa são essenciais as irracionalidades, aquilo que Marx chamou de 'faux frais' (12); pois, no seu interior e apesar de todo o planejamento parcial, o processo social continua a decorrer sem planejamento, irracionalmente.

Tal irracionalidade cunha todos os fins e com isso também a racionalidade dos meios que devem alcançar tais fins. Assim, a onipresente publicidade, funcional para o lucro, zomba de qualquer funcionalidade segundo a medida de um material. Se ela fosse funcional, sem excesso ornamental, já não cumpriria a sua função enquanto publicidade. É verdade que o horror à técnica é ranzinza e reacionário. Mas não é apenas isso. Ele reflete também a angústia em face da violência que uma sociedade irracional imprime aos seus membros compulsórios e a tudo aquilo que existe.

Nessa angústia reverbera uma experiência infantil que parece ter sido estranha ao mesmo Loos que normalmente se mostra muito atento às suas experiências de primeira infância: [110] a saudade daquele palácio de inúmeros quartos revestidos de sedas, a utopia de ter escapado. Algo dessa utopia sobrevive na aversão à escada rolante, à cozinha festejada por Loos, às chaminés de fábrica, ao lado sórdido da nossa sociedade antagonística.

Esse lado sórdido é camuflado pelas aparências externas. Porém, o desmantelamento dessas aparências, a destruição das ameias daqueles falsos castelos que Thorstein Veblen tanto desprezava, e até a eliminação do ornamento estampado nos sapatos – nada disso tem qualquer poder sobre a esfera degradada em que ainda hoje a práxis acontece, mas acaba reforçando o horror (13). Essa constelação tem consequências também para o mundo das imagens. Uma arte positivista, uma cultura do meramente existente foi confundida com a verdade estética. Logo veremos nascer o projeto de uma “neo-Ackerstrasse”(14).

Até hoje, a fronteira do funcionalismo tem coincidido com a fronteira da burguesia enquanto senso prático. Mesmo no pensamento de Loos, o inimigo declarado da cerimônia vienense [Wiener Backhendlkultur], encontram-se traços espantosamente burgueses. Em Viena, a estrutura burguesa ainda era tão perpassada por formas feudais e absolutistas, que ele quis aliar-se ao rigor daquela estrutura para emancipar-se das fórmulas antiquadas. Os seus escritos contêm, por exemplo, ataques às complicadas convenções vienenses de cordialidade.

Mas, por outro lado, a sua polêmica tem matizes curiosamente puritanos; ela se aproxima da obsessão. Como em muitas das críticas burguesas da cultura, entrecruzam-se em Loos duas direções distintas: a compreensão de que a cultura existente ainda não é verdadeiramente uma cultura (e essa compreensão norteou a sua relação com o vernáculo); e uma hostilidade à cultura em geral, que preferiria interditar não só as falsas aparências, mas também o toque afável e pacificador da cultura. Loos ignorou o fato de que a cultura não é nem o lugar da natureza bruta, nem o da dominação impiedosa dessa natureza.

O futuro da objetividade [Sachlichkeit] será libertador somente se ela se livrar do seu caráter bárbaro: se ela deixar de imprimir golpes sádicos aos homens - cujas necessidades declara como seu parâmetro - com quinas vivas, quartos parcamente calculados, escadas e coisas semelhantes. [111] Quase todo consumidor deve ter sentido na pele a pouca praticidade do impiedosamente prático. Daí a suspeita de que abdicação do estilo seja, ela própria, um estilo.

Loos associa os ornamentos a símbolos eróticos. A sua exigência de extingui-los está aliada à sua antipatia contra a simbologia erótica; a natureza não domesticada lhe parece regressiva e vergonhosa ao mesmo tempo. No tom de sua condenação do ornamento ressoa uma indignação - muitas vezes fruto de projeção – contra os atentados ao pudor: "mas o homem do nosso tempo, que por pulsão interior picha as paredes com símbolos eróticos, ou é um criminoso ou um degenerado".

O termo pejorativo 'degeneração' leva a consequências que não teriam agradado a Loos. "É possível", pensa ele, "medir a cultura de um país pelo grau em que as paredes dos banheiros estão pichadas". Mas em países do sul, e nos países mediterrâneos em geral, acha-se muito disso; os surrealistas fizeram amplo uso de tais atos inconscientes, e Loos certamente teria hesitado em acusar essas regiões de carência cultural.

O seu ódio ao ornamento só se explica pelo fato de ele sentir ali o impulso mimético, contrário à objetivação racional; ou seja, pelo fato de ele sentir, no ornamento, a expressão que, ainda enquanto luto e lamento, é próxima do mesmo princípio de prazer que nega a expressão de luto e lamento. Apenas numa abstração esquemática, o aspecto expressivo pode ser relegado à arte e apartado dos objetos de uso. Mesmo quando lhes falta esse aspecto, os objetos de uso prestam tributo à expressão através do esforço em evitá-la.

Objetos de uso envelhecidos transformam-se inteiramente em expressão, em imagem coletiva de uma época. Dificilmente há alguma forma prática que, ao lado da sua adequação ao uso, não seja também um símbolo. [112] A psicanálise demonstrou isso sobretudo nas imagens arcaicas do inconsciente, entre as quais a casa figura em primeiro lugar.

De acordo com a intelecção de Freud, a intenção simbólica vem ocupando rapidamente as formas técnicas, como a aeronave e - segundo pesquisas americanas atuais sobre a psicologia das massas - especialmente o carro. Formas utilitárias são a linguagem de sua própria função. Por força do impulso mimético, os seres vivos se fazem a si mesmos iguais àquilo que o cerca, muito antes dos artistas começarem a imitar.

O que aparece primeiro como símbolo, depois como ornamento e finalmente como supérfluo tem sua origem em formas naturais, às quais os homens se adequaram através de seus artefatos. A imagem interior que os homens expressam nesse impulso já foi algo exterior, algo coercitivamente objetivo. Isso deve explicar o fato, conhecido desde Loos, de os ornamentos – assim como as formas artísticas em geral – não poderem ser inventados.

A produção de todo artista, não apenas daquele atado a finalidades, se reduz a algo incomparavelmente mais modesto do que queria a religião da arte do século XIX e do início do século XX. Fica a pergunta de como ainda seria possível uma arte para a qual os ornamentos existentes deixaram de ser substanciais e que tampouco pode inventar ornamentos novos.

A dificuldade em que a objetividade [Sachlichkeit] desembocou não é uma falta ou um erro cuja correção dependa apenas da nossa vontade. Ela deriva diretamente do caráter histórico do problema. Fracassamos no próprio uso; o uso - que por certo está muito mais imediatamente ligado ao princípio de prazer do que os construtos responsáveis apenas pela sua própria lei formal - não deve ser.

De acordo com a moral burguesa do trabalho, o prazer parece energia desperdiçada. Loos apropriou-se dessa avaliação. Nas suas formulações, fica claro o quanto ele, tão precoce crítico da cultura, foi um aliado da mesma ordem cujas manifestações censurava onde quer que ainda não tivessem conseguido seguir inteiramente os seus próprios princípios: “O ornamento é força de trabalho desperdiçada e por isso saúde desperdiçada. Sempre foi assim. Hoje entretanto significa também material desperdiçado, e as duas coisas juntas significam capital desperdiçado”*. [113]

Motivos irreconciliáveis entrecruzam-se nessa afirmação: parcimônia, pois onde está escrito que nada deve ser desperdiçado senão nas normas da rentabilidade; e o sonho de um mundo tecnológico, libertado da ignomínia do trabalho. O segundo motivo aponta para além do mundo das utilidades.

Em Loos, esse motivo aparece nitidamente na compreensão de que a tão lamentada impotência para o ornamento, a chamada extinção da força formadora de estilos - que ele percebeu ser invenção de historiadores da arte - é um avanço; na compreensão de que os pontos da sociedade industrial considerados negativos pela mentalidade burguesa são os seus pontos positivos.

Por estilo entendia-se o ornamento. Então eu disse: não chorem! Vejam, é nisso que está a grandiosidade do nosso tempo: ele não é capaz de gerar um ornamento novo. Nós superamos o ornamento, nós conseguimos alcançar a ausência de ornamento. Vejam, o tempo está próximo, a redenção nos espera. Logo as ruas das cidades estarão brilhando como muros brancos. Como Sion, a cidade sagrada, a capital do céu. Então a redenção terá chegado.*

Nessa concepção, um estado de coisas sem ornamentos e a utopia seriam a mesma coisa: um presente redimido concretizado, sem necessidade de símbolo algum. Toda a verdade da objetividade [Sachlichkeit] depende dessa utopia. Para Loos, tal verdade é legitimada pela experiência crítica que ele teve do Jugendstil:

O homem individual é incapaz de criar uma forma; portanto, o mesmo vale para o arquiteto. Mas o arquiteto tenta esse feito impossível continuamente - e sempre em vão. Forma ou ornamento são o resultado de um trabalho coletivo inconsciente dos homens de todo uma esfera cultural. Todo o resto é arte. A arte é o viés do gênio. Deus lhe deu sua missão.**

Esse axioma, de que o artista age a encargo de Deus, já não se sustenta mais. [114] O desencantamento que começou na esfera do uso estendeu-se à arte. A diferença absoluta entre o impiedosamente funcional e o autônomo e livre diminuiu. A precariedade das formas puramente funcionais veio à tona: algo de monótono, pobre, estupidamente prático. A isso sobressai uma ou outra grande realização, que por ora costuma ser atribuída apenas à genialidade do seu autor, sem que ninguém verifique o que autoriza tal genialidade objetivamente.

Por outro lado, a tentativa de acrescentar à obra um pouco de imaginação (como se imaginação fosse um corretivo) ou de incrementar a coisa com algo que não provém dela mesma, é igualmente vã e serve apenas à falsa ressurreição do enfeite criticado pela arquitetura nova. Nada mais triste do que a modernidade moderada do estilo de reconstrução alemão, cuja análise crítica por um verdadeiro entendedor seria extremamente relevante. Confirma-se a minha suspeita das Minima Moralia de que, na verdade, habitar não é mais possível (15).

Sobre a forma de toda habitação pesa a sombra da instabilidade, a sombra daquelas migrações que tiveram o seu terrível prelúdio nos anos de Hitler e de sua guerra. Tal contradição, com toda a sua inevitabilidade, deve ser apreendida pela consciência; mas a consciência não deve apaziguar-se com isso, pois isso significaria deixar de combater a catástrofe que continua nos ameaçando.

A catástrofe mais recente, os bombardeios, colocou a arquitetura numa condição de crise da qual ela não conseguiu escapar. Os polos da contradição são dois conceitos, que parecem excluir-se mutuamente: ofício e imaginação. Loos explicitamente rejeita essa última no contexto do mundo dos usos:

Em lugar das formas fantásticas de séculos passados, em lugar da ornamentação florescente de tempos passados, há de ser colocada a construção limpa e pura. Linhas retas, ângulos retos: assim trabalha o artífice, que tem apenas a função em vista e o material e as ferramentas diante de si.*

 [115] Le Corbusier, pelo contrário, sancionou a imaginação em seus escritos teóricos, ainda que de maneira bastante genérica: “Tarefa do arquiteto: conhecimento do homem, imaginação criadora, beleza, liberdade de escolha (de homens espirituais)”*. É provável que, em geral, os arquitetos mais avançados tendam a privilegiar o ofício, enquanto que os retardatários e sem imaginação adoram falar de imaginação.

No entanto, não se deve simplesmente acatar os conceitos de ofício e de imaginação da forma como vêm sendo desgastados na polêmica corrente. Somente assim chega-se para além da alternativa entre uma coisa e outra.

A palavra ‘ofício’, a princípio de garantida aceitação geral, cobre coisas qualitativamente diversas. Apenas a incompreensão diletante e o idealismo banal negariam que toda atividade autêntica, artística em sentido lato, requer um conhecimento preciso dos materiais e dos procedimentos disponíveis no seu estágio mais avançado.

Somente quem nunca se submeteu à disciplina de um construto e, em lugar disso, sonha de modo intuicionista com a sua origem teme que a proximidade com o material e o conhecimento dos procedimentos façam o artista perder o que ele tem de original. Quem não aprende o que está disponível e leva isso à frente, extrai do pretenso abismo de sua interioridade apenas resquícios de fórmulas superadas.

A palavra ‘ofício’ apela para uma tal verdade simples. Mas nela ressoam também tons muito diferentes. A alusão à mão (16) remete a modos de produção pertencentes à antiga economia de troca, extintos pela técnica e, desde que surgiram as propostas dos precursores ingleses do modern style, rebaixados a um baile de máscaras.

Com o ofício associa-se o avental do Hans Sachs (17), e possivelmente a grande crônica do mundo (18). [116] Por vezes não consigo me livrar da suspeita de que esse ethos arcaico do 'arregaçar as mangas' sobrevive também entre os adeptos mais jovens de um ofício que despreza a arte.

Alguns se sentem acima da arte somente pelo fato de terem sido privados da experiência da arte. Foi essa experiência que motivou Loos a contrapor com tamanho pathos a arte às suas aplicações. No campo da música surpreendi um advogado dos ofícios - que por sinal falava abertamente e com um romântico anti-romantismo de uma 'mentalidade de canteiro de obras' definindo o ofício como o conjunto das fórmulas estereotipadas ou, como ele dizia, o conjunto das ‘práticas’ destinadas a poupar as forças do compositor.

Não lhe ocorreu que, hoje, a especificidade de qualquer tarefa concretamente colocada exclui tais fórmulas. Através de pessoas com essa mentalidade, o ofício transforma-se naquilo que repudia, isto é, na mesma repetição morta e coisificada outrora praticada com os ornamentos. Não me arrisco a decidir se esse mesmo espírito nocivo opera no conceito do design [Gestaltung] quando entendido como uma operação desprendida, independente de exigências e leis imanentes daquilo que deve ser informado.

Em todo caso, o amor retrospectivo pelo artífice - que socialmente está em extinção - deve combinar-se bem com o gesto triunfante do seu sucessor, o especialista. Impolido como suas mesas e cadeiras e orgulhoso do seu conhecimento técnico, ele dispensa-se a si mesmo justamente daquela reflexão tão necessária num tempo que já não possui nada quelhe sirva de orientação.

Por mais que o especialista seja indispensável, por menos que se possa reconstituir os procedimentos de um estado de coisas anterior à divisão do trabalho e irremediavelmente liquidado pela sociedade, ainda assim, a figura do técnico não é a medida de todas as coisas. Sua modernidade desiludida, que se crê desvencilhada de toda ideologia, é muito apropriada para mascarar uma rotina pequeno-burguesa; o ofício [Handwerk] é apropriado para mascarar a manipulação [Handwerkerei].

O bom ofício significa a adequação de meios a fins. [117] Os fins certamente não independem de tal adequação. Os meios têm uma lógica própria; uma lógica que aponta para além deles. Mas, se a adequação dos meios torna-se fim em si mesma, se é fetichizada, então a mentalidade do ofício provoca o oposto da intenção originalmente visada com a mobilização do ofício contra o jaquetão de veludo e o barrete.

Ela inibe a razão objetiva das forças produtivas ao invés de desenvolvê-la livremente. Onde quer que se estabeleça o ofício como norma hoje, há de se examinar de perto do que se trata. O conceito do ofício enquanto tal está no interior do sistema social de funções. De maneira alguma as suas funções são sempre esclarecidas e progressistas.

Entretanto, assim como não se deve estacionar no conceito de ofício, também não se deve estacionar no de imaginação. A trivialidade psicológica, de que a imaginação não seria mais do que a criação da imagem de algo ainda inexistente, não alcança aquilo a que a imaginação se destina nos processos artísticos; e creio que também nos processos das artes utilitárias.

Walter Benjamin certa vez definiu a imaginação como a capacidade de interpolação nas menores coisas. Sem dúvida, essa definição tem maior alcance do que as opiniões correntes, inclinadas ora à divinização amadorística, ora à condenação pragmática do conceito. Imaginação no trabalho produtivo com o construto não é o prazer da invenção aleatória, da creatio ex nihilo. Isso não existe em arte alguma, nem mesmo na autônoma, que Loos julgava capacitada para tanto.

Qualquer análise aprofundada de obras de arte autônomas leva a concluir que a invenção adicionada pelo artista ao estado dado dos materiais e das formas é infinitamente pequena: um valor limite. Por outro lado, a redução do conceito de imaginação à adequação antecipada a materiais ou fins contradiz esse conceito diretamente; nesse caso, a imaginação permaneceria numa mesmice eterna.

É impossível descrever os poderosos feitos da imaginação de Corbusier através daquelas relações da arquitetura com o corpo humano, às quais ele recorreu nos seus escritos. [118] Por menos que os materiais e formas que o artista recebe e com os quais trabalha ainda sejam significativos, parece haver neles algo que é mais do que material e forma.

Imaginação significa: inervar esse mais. Isso não é tão absurdo quanto parece. Porque as formas e os materiais não são aqueles dados da natureza pelos quais o artista irrefletido facilmente os toma. Neles armazenou-se história e, através dela, também espírito. O que eles contêm não é uma lei positiva, mas transforma-se numa figura nitidamente delineada de um problema.

Imaginação artística desperta o que ali está acumulado, ao aperceber-se desse problema. Os passos sempre mínimos da imaginação respondem à pergunta silenciosa que os materiais e as formas lhe dirigem em sua muda linguagem das coisas. Nesse processo, os momentos apartados, inclusive função e lei formal imanente, confluem.

Entre as funções, o espaço e o material há uma ação recíproca; nenhum desses elementos constitui um fenômeno originário ao qual os outros possam ser reduzidos. A intelecção filosófica de que nenhum pensamento conduz ao início absoluto e de que esse início é mero produto da abstração vale também para a estética.

A música, por exemplo, durante muito tempo empenhada em encontrar o pretenso elemento primário do som singular, teve que aprender que ele não existe. O som só adquire sentido nas relações funcionais do construto; sem elas, ele seria apenas um dado físico. Somente a superstição pode ter a esperança de extrair dele uma estrutura estética latente.

Fala-se, com razão, em visão espacial na arquitetura. Mas essa visão não é um em si abstrato, uma visão do espaço em geral, pois o espaço não pode ser imaginado senão através de entidades espaciais. A visão espacial está emaranhada nas funções; quando a produção arquitetônica consegue efetivá-la para além da funcionalidade, ela é ao mesmo tempo imanente às funções. O alcance de tal síntese provavelmente constitui um critério central da grande arquitetura. [119]

A arquitetura pergunta: como uma determinada função pode tornar-se espaço, em que formas e que materiais?Todos os elementos são reciprocamente dependentes. Imaginação arquitetônica seria então a faculdade de articular o espaço através das funções, fazer com que essas se tornem espaço. Inversamente, o espaço e a visão desse só podem ser mais do que o parcamente funcional, quando a imaginação mergulha na funcionalidade. Ela explode as relações funcionais imanentes que a mobilizaram inicialmente.

Tenho consciência de que conceitos como o de visão espacial desembocam facilmente no fraseado e, por fim, em algo também decorativo. Sinto a barreira do amador, incapaz de precisar suficientemente esses conceitos que as arquiteturas modernas significativas iluminam com tanta intensidade. Ainda assim, permitam-me uma especulação: à diferença da ideia abstrata de espaço, a visão espacial representa para o contexto visual aquilo que o contexto acústico chama de musicalidade.

A musicalidade não pode ser reduzida à ideia abstrata de tempo; por exemplo, à capacidade - certamente útil - de ‘ouvir’ as unidades do metrônomo sem que ele esteja ligado. De modo semelhante, a visão espacial não se limita a imagens espaciais, ainda que essas sejam indispensáveis para o arquiteto, que deve ler suas plantas e cortes como o músico lê suas partituras. Entretanto, a visão espacial parece exigir mais: deixar que algo lhe ocorra a partir do espaço; não algo de arbitrário no espaço e indiferente em relação a esse.

Analogamente, o músico precisa inventar suas melodias - e atualmente estruturas musicais inteiras - a partir do tempo, da necessidade de organizá-lo. Para isso não bastam as meras relações temporais, que são indiferentes àquilo que acontece concretamente na música. Tampouco basta a invenção de eventos ou complexos musicais singulares, cujas estruturas e relações temporais recíprocas não sejam concebidas juntamente eles. [120]

Numa visão espacial produtiva, a função assume em larga medida o papel do conteúdo, em oposição aos constituintes formais que o arquiteto cria a partir do espaço. Através da função, a tensão entre forma e conteúdo sem a qual não há criação artística, é compartilhada justamente pela arte utilitária.

A ascese da nova objetividade tem de verdadeiro o fato de que uma expressão subjetiva imediata seria inadequada para a arquitetura. Quando se busca essa expressão, o resultado não é arquitetura, mas cenários, por vezes, como nos velhos filmes de Golem, até bons. Na arquitetura, o lugar da expressão subjetiva é ocupado pela função para o sujeito. É provável que a arquitetura seja tanto mais qualificada quanto mais profundamente ela medeia reciprocamente os dois extremos: construção formal e função.

No entanto, a função para o sujeito não é a função para um homem universal, determinado de uma vez por todas pela sua physis. Ela visa as pessoas socialmente concretas. Em contraposição aos instintos refreados dos sujeitos empíricos - que na sociedade atual ainda desejam a felicidade no recanto e todas as velharias imagináveis - a arquitetura funcional representa o caráter inteligível, um potencial humano que é captado pela consciência mais avançada, porém sufocado na maioria das pessoas, pois essas são mantidas impotentes até o fundo de suas almas.

Uma arquitetura digna de seres humanos imagina os homens melhores do que realmente são; imagina-os como poderiam ser, de acordo com o estado de suas próprias forças produtivas, concretizadas na técnica. Quando a arquitetura atende à verdadeira necessidade ao invés de perpetuar ideologias, contradiz as necessidades do aqui e agora; ela continua sendo – tal como o título do livro de Loos lamentava há quase setenta anos – uma fala sem eco (19).

O fato de os grandes arquitetos, de Loos a Corbusier e Scharoun, terem conseguido realizar apenas uma pequena parte de suas obras em pedra e concreto não se explica simplesmente pela incompreensão de proprietários e grêmios administrativos, ainda que não se deva subestimar tal incompreensão. [121] Esse fato é condicionado por um antagonismo social, sobre o qual nem a mais forte das arquiteturas tem poder: a mesma sociedade que desenvolveu vertiginosamente as forças produtivas humanas mantém tais forças presas a relações de produção impostas, deformando os homens - que na verdade são as forças produtivas - segundo a medida dessas relações.

Essa contradição fundamental aparece na arquitetura. Ela, por si só, é tão impotente frente a essa contradição quanto os consumidores. Não se pode dizer que ela esteja inteiramente certa e os homens inteiramente errados. Esses já sofrem injustiça suficiente pelo fato de permanecerem consciente e inconscientemente presos a uma menoridade que os impede de se identificarem com a sua própria causa.

Dado que a arquitetura não é apenas autônoma mas também atada a funções, ela não pode simplesmente negar os homens tais como são; embora, enquanto autônoma, deva fazê-lo. Se ela passasse por cima dos homens tais quais, acomodar-se-ia a uma antropologia ou talvez até uma ontologia questionáveis; não foi por mero acaso que Le Corbusier inventou protótipos humanos.

Os homens vivos, ainda os mais retrógrados e convencionalmente acanhados, têm direito à satisfação de suas necessidades, mesmo quando são necessidades falsas. Quando a ideia da necessidade verdadeira e objetiva leva a ignorar a necessidade subjetiva, ela se transforma em opressão brutal, tal como sempre ocorreu à volonté de tous postergada pela volonté générale.

Até mesmo na falsa necessidade dos seres humanos sobrevive um pouco de liberdade, um pouco daquilo que a teoria econômica outrora chamou de valor de uso, contraposto ao abstrato valor de troca. Para as pessoas vivas e reais, a arquitetura legítima representa necessariamente um inimigo, pois ela os priva daquilo que, tais como são, querem e até precisam.

Para além do fenômeno do cultural lag, a causa da antinomia talvez esteja no desenvolvimento do conceito de arte. Para tornar-se arte por inteiro e de acordo com a sua própria lei formal, a arte precisa cristalizar-se autonomamente. [122] Isso perfaz o seu conteúdo de verdade; caso contrário, ela seria subserviente àquilo que a sua simples existência nega. Mas, enquanto produto humano, ela é incapaz de esquivar-se inteiramente dos homens.

Ela contém em si como elemento constitutivo aquilo a que resiste. Quando a arte extirpa por inteiro a memória do seu ser-para-outro, ela se transforma em fetiche, isto é, naquele absoluto auto-fabricado - e por isso mesmo relativo e não absoluto – que foi o sonho de beleza do Jugenstil. Ainda assim, a arte é obrigada a buscar o puro ser-em-si, se não quiser sacrificar-se àquilo que já descobriu ser fraudulento. O resultado é quid pro quo.

A produção virtualmente voltada para um tipo de homem libertado, emancipado - que seria possível somente numa sociedade transformada – aparece, na sociedade presente, como uma adequação à técnica degenerada em fim em si mesma, como apoteose daquela reificação da qual a arte é o oposto irreconciliável. O que, todavia, não é apenas aparência: quanto mais consequentemente a arte, tanto a autônoma quanto a chamada aplicada, abdica de suas próprias origens mágicas e míticas em prol de sua lei formal, tanto maior o perigo de uma tal adequação, contra a qual a arte não possui nenhuma fórmula universal.

A aporia de Thorstein Veblen se repete. Antes de 1900, ele pedia aos homens que pensassem de modo puramente tecnológico, mecânico-causal, para se livrarem da grande mentira de seu mundo de imagens. Com isso ele sancionou as categorias coisais da mesma economia a que se dirigia toda a sua crítica. Num estado de liberdade, os homens não se adequariam à técnica, mas a técnica, aos homens. Na época atual, entretanto, os homens se integraram à técnica e, como se tivessem legado a ela sua melhor parte, ficaram para trás como cascas vazias.

As suas consciências foram coisificadas frente à tecnologia, e por isso devem ser criticadas a partir dela, objetivamente. Aquela proposição tão razoável, de que a técnica existe para servir os homens, transformou-se em ideologia rasa de pessoas retrógradas; [123] pode-se constatar isso no fato de que basta repeti-la para ser recompensado por toda parte com entusiástico consentimento. Num estado de falsidade generalizada, nada apazigua a contradição.

Por um lado, a utopia imaginada livremente e para além da ordem existente seria impotente, um ornamento arbitrário, pois de qualquer modo ela precisaria extrair seus elementos e sua estrutura dessa ordem. Por outro lado, a tentativa de recobrir o elemento utópico com a proscrição de sua imagem, desemboca imediatamente na prescrição do existente.

A pergunta pelo funcionalismo é a pergunta pela subordinação à utilidade. Sem dúvida, o inútil está corroído. A evolução das artes trouxe à tona sua deficiência estética imanente. Em contrapartida, o meramente útil está entrelaçado em relações de culpa; ele é um instrumento da devastação do mundo e de uma inconsolabilidade que interdita aos homens qualquer consolo que não os iluda.

Já que a contradição não pode ser eliminada, um ínfimo passo nessa direção seria compreendê-la. Na sociedade burguesa, a utilidade tem sua dialética própria. A utilidade seria a sua maior conquista, a coisa tornada humana, a reconciliação com os objetos que deixariam de armar-se contra os homens e de ser humilhados por eles.

A percepção infantil das coisas técnicas promete um estado assim: elas aparecem como imagens de algo próximo e solidário, sem o interesse pelo lucro. Essa concepção não foi estranha às utopias sociais. Como um ponto de fuga do desenvolvimento poder-se-ia imaginar que as coisas tornadas totalmente úteis perderiam a sua frieza. Não apenas os homens deixariam de sofrer com o caráter coisificado do mundo: também as coisas teriam o que lhes convém, assim que encontrassem plenamente o seu fim, assim que fossem libertadas da própria coisidade. Mas, na sociedade presente, toda utilidade está destorcida, enfeitiçada.

A fraude está no fato de a sociedade fazer com que as coisas pareçam existir em função dos homens; elas são produzidas em função do lucro, satisfazem as necessidades apenas paralelamente, geram essas necessidades de acordo com os interesses do lucro e podam-nas também na sua medida. Uma vez que uma utilidade em prol dos homens e libertada de sua dominação e exploração seria o correto, nada é mais insuportável esteticamente do que a forma atual das coisas utilitárias, subjugadas pelo seu oposto e deformadas por ele até a essência.

A raison d'êtrede toda arte autônoma, desde os primórdios da era burguesa, reside no fato de que somente o inútil responde por aquilo que o útil seria um dia: o uso feliz, o contato com as coisas para além da antítese de utilidade e inutilidade. Essa situação leva as pessoas que desejam algo melhor a rebelarem-se contra o prático. Quando o proclamam reativa e exageradamente, aliam-se ao inimigo mortal. Diz-se que trabalho não desonra.

Como a maioria dos provérbios, esse também não faz mais do que encobrir a verdade oposta: a troca desonra o próprio trabalho útil; e sua maldição alcança também a arte autônoma. Nela, a inutilidade, presa à sua forma limitada e particular, está desesperadamente exposta à crítica por parte da utilidade; enquanto que a utilidade, ou aquilo que já existe de qualquer modo, fecha-se contra as suas possibilidades. O segredo sombrio da arte é o caráter de fetiche da mercadoria. O funcionalismo quer escapar desse emaranhado; mas, enquanto continuar dependente da sociedade emaranhada, ele forçará as amarras em vão.

Tentei conscientizá-los de contradições cujas soluções não podem ser delineadas por um amador; há de se pôr em dúvida se elas têm alguma solução hoje. Nesse sentido, os senhores têm todo direito de me criticar pela inutilidade da minha argumentação. Mas, eu poderia me defender exatamente com a tese de que os conceitos do útil e do inútil não podem ser acatados sem revisão. Foi-se o tempo em que podíamos nos isolar em nossas respectivas tarefas. [125] O objeto exige a reflexão que a objetividade [Sachlichkeit] critica por lhe parecer estranha ao objeto.

A exigência de legitimidade apressadamente dirigida ao pensamento – o ‘para que tudo isso?’ – costuma paralisar esse pensamento exatamente naquele ponto em que traria compreensões que um dia, inusitadamente, podem contribuir para uma práxis melhor. O pensamento tem a sua própria força motriz compulsória, semelhante àquela com a qual os senhores estão familiarizados pelo seu trabalho com o material arquitetônico.

No fato de o trabalho concreto do artista, seja ele dirigido a fins ou não, não poder prosseguir ingenuamente e numa trilha pré-definida manifesta-se uma crise. Ela exige do especialista, por mais que tenha orgulho da sua especialidade, que enxergue para além dela afim exercê-la satisfatoriamente. E isso deve ser feito em dois sentidos. Em primeiro lugar, no sentido da teoria social: o especialista deve prestar contas a si mesmo acerca do lugar que o seu trabalho ocupa na sociedade e acerca das barreiras sociais nas quais esbarra o tempo todo. Elas se tornam evidentes no urbanismo, onde – não só por ocasião da reconstrução – colidem questões arquitetônicas e sociais; como, por exemplo, a questão da existência ou inexistência de um sujeito social coletivo.

Não é preciso explicar que o planejamento urbano permanecerá insuficiente enquanto for dirigido a fins particulares ao invés de fins sociais comuns. Os preceitos práticos imediatos do planejamento urbano de modo algum coincidem com os preceitos de um planejamento urbano verdadeiramente racional, livre das irracionalidades sociais: falta-lhes o sujeito social coletivo que o planejamento urbano deveria visar. Essa é uma das razões pelas quais o urbanismo ameaça, ou degenerar em algo caótico, ou então obstruir as conquistas arquitetônicas produtivas individuais.

Em segundo lugar, e no seu meio quero dizer isso com certa veemência, a arquitetura e toda arte utilitária exigem novamente a famigerada reflexão estética. Eu sei o quanto a palavra ‘estética’ lhes soa suspeita. [126] Os senhores talvez pensem em professores que, com o olhar elevado aos céus, tramam leis formalistas de beleza eterna e imperecível, as quais na maioria das vezes nada são além de receitas para a produção de efêmero Kitsch classicista.

Numa estética atual, seria necessário o oposto: ela deveria absorver exatamente aquelas objeções que a tornaram fundamentalmente repugnante para todos os verdadeiros artistas. Se ela prosseguisse academicamente, sem uma autocrítica ferrenha, já estaria condenada. Mas, do mesmo modo que estética enquanto momento integral da filosofia necessita de novos esforços reflexivos para avançar, assim também a prática artística mais recente depende da estética.

A estética tornar-se-á uma necessidade prática, se estiver correta a concepção de que conceitos como os de utilidade e inutilidade na arte, separação entre autonomia e funcionalidade, imaginação e ornamento precisam ser rediscutidos antes de o artista adaptar-se positiva ou negativamente a tais categorias. Aquelas considerações às quais os senhores se veem impelidos diariamente e que estão para além das tarefas mais imediatas são estéticas, mesmo que não queiram.

Acontece-lhes o mesmo que ao Monsieur Jourdain de Molière, quando, na aula de retórica, surpreende-se com a descoberta de que vem falando ‘em prosa’ por toda a sua vida. Mas, uma vez impelidos a considerações estéticas, os senhores estão entregues à sua força. Elas não são passíveis de interrupção e citação arbitrárias e pelo mero refinamento. Quem não persegue o pensamento estético energicamente costuma cair em conjeturas banais, vacilantes tentativas de justificação pro domo. No campo da música, Pierre Boulez - um dos compositores tecnicamente mais competentes da atualidade, que na sua própria obra levou o construtivismo ao extremo - anunciou enfaticamente a demanda pela estética.

Uma tal estética não teria a prepotência de proclamar princípios daquilo que seria belo ou feio em si mesmo; [127] e somente esse cuidado já bastaria para colocar o problema do ornamento sob outra luz. A beleza hoje não tem outra medida senão a profundidade com a qual os construtos levam a cabo as contradições que os perpassam e que resolvem somente perseguindo-as, ao invés de ocultá-las. Uma beleza apenas formal, seja lá o que for, seria vazia e nula; já a mera beleza de conteúdos perder-se-ia no deleite sensível pré-artístico do observador.

A beleza, ou é resultante de um campo de forças, ou então não é de modo algum. Uma estética transformada - cujo programa vem se delineando tanto mais nitidamente quanto maior a sua urgência - também já não veria no conceito de arte o seu correlato evidente, tal como faz a estética tradicional. Hoje, o pensamento estético deveria, ao pensar a arte, ultrapassá-la, ultrapassando também a oposição coagulada entre o utilitário e o não utilitário, com a qual o produtor não sofre menos do que o público.

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O texto aqui reproduzido encontra-se disponível em: http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/babel/textos/adorno-funcionalismo.pdf

Agitprop reproduz texto que está disponível na web, depois de ter consultado a tradutora e a editora alemã. Caso algum direito esteja sendo infringido, basta escrever e a redação retirará o texto do ar.

Sobre o Autor(a):

Theodor Wiesengrund Adorno (11/09/1903-06/08/1969) nasceu em Frankfurt, Alemanha. Filósofo de origem judaica, foi um dos grandes nomes da chamada Escola de Frankfurt, corrente intelectual que contribui para o renascimento cultural da Alemanha após a II Guerra Mundial.

Notas

(1) Tradução elaborada por Silke Kapp a partir da obra: “Funktionalismus heute”. In: Theodor Adorno. Ohne Leitbild - Parva Aesthetica. Frankfurt /M: Suhrkamp, 1967, pp. 104-126. Trata-se de uma palestra para o congresso de 1965 do Deutscher Werkbund. (A paginação do original foi indicada entre colchetes no corpo do texto. As notas de rodapé indicadas com asterisco são originais, as notas numeradas são de tradução).

 (2) O chamado Deutscher Werkbund surgiu em 1907 em Munique como associação de artistas, artesãos e industriais que buscavam uma melhoria na forma dos objetos de uso cotidiano. Ligando-se às ideias de William Morris e tendo seguido caminhos semelhantes aos do movimento Arts and Crafts na Inglaterra, o Werkbund atuou sobretudo por meio de exposições, publicações e trabalhos pedagógicos. Entre os seus fundadores estão Henry van de Velde e Herbert Muthesius, que representam também as duas correntes opostas que ali tentavam se unir: de um lado, van de Velde, defensor do ofício e da postura criativa pessoal do artista; do outro lado, Muthesius empenhado em cultivar o design e o desenvolvimento de produtos estandardizados para a indústria. O Werkbund foi dissolvido pelo governo nazista em 1933 e reconstituído em 1946.

(3) A chamada Neue Sachlichkeit ou Nova Objetividade foi uma das tendências mais fortes na arte alemã pós-expressionista. O termo sachlich ou objetivo, no entanto, carrega ainda outras conotações: a ênfase no objeto ou na coisa (Sache), que para Adorno pode implicar a sensibilidade estética, mas muitas vezes expressa também uma atitude bitolada, terra-a-terra. Quanto à escola musical, Adorno se refere sobretudo aos compositores austríacos Arnold Schönberg e Alban Berg (de quem ele foi aluno). Schönberg (1874–1951) revolucionou a música, primeiro com a expansão do uso da escala cromática, depois com a atonalidade livre e finalmente com a invenção do chamado dodecafonismo.

* Cf. Adolf Loos. Sämtliche Schriften I. Wien-München, 1962, p. 314 et s.

(4) O termo alemão Zweck, que originalmente significava 'alvo', abarca desde a ideia de função até a de fim ou objetivo final. À falta de melhor solução, foi então traduzida por 'fim' ou 'função', conforme o contexto. O texto é repleto de termos derivados, cujas opções de tradução foram:

zweckfreie Kunst- arte não utilitária (literalmente: arte livre de fins);

Zweckkunst- arte utilitária (literalmente: arte para um fim);

zweckgebunden- utilitário (literalmente: atado a fins);

Zweckmässigkeit- traduzido por "finalidade", quando relacionado à lógica inerente das obras de arte tal como na fórmula kantiana da finalidade sem fim, e por "funcionalidade", quando relacionado a uma função externa (literalmente: adequação a fins);

zweckmässig- funcional (literalmente: adequado a fins),

Zweckform- forma utilitária (literalmente: forma para um fim).

(5) "Beleza é a forma de finalidade de um objeto, enquanto nele percebida sem a representação de um fim" (Imanuel Kant. Kritik der Urteilskraft. B61.). Na estética kantiana, há a "representação de um fim" quando pensamos que a existência de um objeto é possibilitada pelo fato desse objeto causar algum efeito determinado. (Uma ferramenta, por exemplo, existe somente porque produz um efeito. Não existiriam binóculos sem a ideia prévia de um instrumento para se ver melhor o que está longe.) Podemos ainda atribuir forma finalística - na linguagem de Kant "finalidade" - a objetos ou ações cujo fim não conhecemos, mas que só se tornam compreensíveis para nós quando imaginamos esse fim. (A natureza é frequentemente abordada dessa forma; uma planta, por exemplo, torna-se compreensível para nos quando imaginamos que suas partes são organizadas com vistas à sobrevida da espécie, o que implica por sua vez a ideia de que a sobrevida da espécie seria o "objetivo" da planta, talvez determinado pela vontade divina. A rigor, essa ideia é imaginária, porque não temos nenhuma comprovação de que a planta seja dirigida por uma vontade e não pelo mero acaso.) No caso particular da obra de arte, Kant supõe que a percebemos como se ela funcionasse para alguma coisa, mas sem que tenhamos a ânsia de descobrir que coisa seria essa. Temos uma percepção de finalidade ou funcionalidade que, no entanto, não obriga a pensar em nada como ponto de fuga exterior ou objetivo ulterior da obra. Ela "funciona" somente para si mesma.

(6) Há um jogo sutil no termo banausisch, pois Banause (a pessoa medíocre, grosseira ou insensível à arte), em grego, significa artífice, aquele que faz um trabalho manual.

(7) Karl Kraus (1874-1936) foi escritor atuante em Viena, fundador da polêmica revista Die Fackel (A tocha), empenhado num pacifismo ético e na clareza da linguagem, por ele diretamente relacionada à clareza da vida pública.

(8) O termo Kunstgewerbe designa um procedimento em que o trabalho de concepção e produção do objeto - na maioria das vezes utilitário - é dividido; já não há nele a figura do artesão que reunia as duas coisas. Parece-me que o tom pejorativo com que Adorno o emprega está relacionado ao fato de que, sobretudo no início da industrialização, objetos tidos como artísticos são fabricados em série, sem que os seus produtores - isto é, os operários - tenham qualquer empenho desse gênero. Unem-se no Kunstgewerbe os problemas do trabalho alienado e da pseudo-autenticidade do Kitsch industrial.

(9) Peter Altenberg (1859-1919), que na realidade se chamava Richard Engländer, foi um mestre vienense da prosa impressionista e amigo pessoal de Loos. Em 1903, Altenberg editou o primeiro número da revista Kunst, contendo um artigo de Loos.

(10) “Pois de agora em diante nunca mais / o sagrado servirá ao uso”.

(11) Batique é uma técnica javanesa de tingimento, em que as partes do tecido que não devem receber cor são previamente mergulhadas em cera.

(12) Literalmente: falsos custos; despesas acidentais, que se acrescentam às despesas principais.

(13) Thorstein Veblen (1857-1929) foi um sociólogo americano, fundador do chamado institucionalismo, que procurava fazer uma política econômica fundada no conhecimento das instituições sociais reais, isto é, tais como se encontram de fato. Adorno faz uma crítica extensa a Veblen no ensaio “Veblen e o ataque à cultura”. Enquanto que, na sua Theory of Leisure Class, Veblen parece querer abolir todos os elementos da cultura que não se adequam perfeitamente às relações sociais de produção vigentes, Adorno considera que exatamente esses elementos, desvencilhados da utilidade nua e crua, seriam humanamente dignos.

(14) Ackerstrasse é uma rua de Berlim, famosa pelos seus precários edifícios de aluguel, as chamadas Mietskasernen.

* Adolf Loos, op.cit., p.282.

* Idem, p.278.

** Idem, p.393.

(15) Cf. Theodor Adorno. Minima Moralia - Reflexões a partir da vida danificada. São

Paulo, Ática, 1992, p. 31.

* Adolf Loos, op.cit., p.345.

* Le Corbusier, Mein Werk, Stuttgart 1960, p.306.

(16) O termo ofício foi aqui empregado como tradução de Handwerk, que literalmente significa 'obra de mão', ou seja, manufatura.

(17) Hans Sachs (1494-1576), filho de um alfaiate e ele próprio sapateiro por profissão, foi um dos principais representantes do chamado Meistersang (literalmente: canto dos mestres), tendo composto mais de 4000 canções. O Meistersang é uma espécie de continuação acadêmica da lírica trovadoresca, em que a arte torna-se um ofício passível de aprendizado através de regras e normas prefixadas tanto para a poesia, quanto para a música. Muitos dos seus praticantes - incluindo o próprio Sachs - eram de fato mestres de algum ofício.

(18) As Crônicas do mundo, muito difundidas durante a Idade Média, são aquelas que abrangem todo o percurso do mundo, desde a criação até o juízo final, conforme as seis idades agostinianas.

(19) Ins Leere gesprochen, publicado em 1921, é uma coletânea dos artigos que Loos escreveu entre 1897 e 1900 para o jornal Neue Freie Presse de Viena.

 


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