Ano: V Número: 50
ISSN: 1983-005X
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Onde estamos?
Hermann Muthesius
Tradutor(a):Mila Waldeck

Trecho do discurso realizado no encontro anual da Deutscher Werkbund em Dresden.

Ajudar a forma a recuperar os seus direitos deve ser a tarefa fundamental de nosso tempo; em especial, esse deve ser o conteúdo de qualquer trabalho de reforma artística empreendido hoje.

O feliz progresso do movimento Arts and Crafts – que deu novos contornos para a decoração de nossos quartos, exalou vitalidade no ofício manual e transmitiu uma inspiração frutífera na arquitetura – pode ser considerado apenas um pequeno prelúdio do que ainda precisa vir.

Pois, apesar de tudo o que alcançamos, estamos ainda nos debatendo, imersos até os joelhos na brutalização das formas. Se for necessário atestá-lo, basta simplesmente observar o fato de que nosso país está sendo coberto diariamente e de hora em hora por edifícios do mais inferior aspecto, indignos de nossos tempos e calculados para falar muito eloquentemente para a posteridade sobre a falta de cultura de nossa época.

Que sentido há em falar de êxito enquanto essa situação perdura? Existe um testemunho mais exato do gosto de um povo do que os edifícios com que enchem as ruas e áreas ocupadas?

O que significaria, por outro lado, se pudéssemos provar que hoje as forças requeridas para construções arquitetônicas decentes estão disponíveis e que estas forças simplesmente não têm sido capazes de abordar o trabalho que há para ser feito?

Precisamente o fato de que elas não abordaram o trabalho a ser feito caracteriza a situação cultural de nossos dias. O próprio fato de que milhares e milhares de pessoas do nosso povo não apenas passam imperturbáveis por este crime contra a forma mas, enquanto proprietários de edificações, contribuem para essa multiplicação ao escolher conselheiros inadequados, é prova inequívoca da condição baixa de nosso senso de forma e, portanto, da nossa cultura artística em geral.

A Deutscher Werkbund foi fundada em anos em que a união estreita de todos os esforços benéficos daqueles envolvidos contra as violentas ofensivas de seus adversários fez-se necessária. Seus anos de combate nessa direção já passaram.

As ideias em torno das quais ela existe não são mais refutadas por ninguém, eles desfrutam de aceitação universal. Isso significa que sua existência agora é supérflua?

Poder-se ia pensar assim, caso se levasse em consideração apenas o campo estreito da criação industrial. Mas não podemos nos contentar com o fato de termos colocado as almofadas do sofá e as cadeiras em ordem, precisamos pensar além.

Na verdade, o verdadeiro trabalho do Deutsher Werkbund está começando apenas agora, ao entrarmos numa era de paz. E se até agora a ideia de qualidade ocupou o primeiro lugar no trabalho da Werkbund, já podemos verificar hoje que, no que diz respeito à tecnologia e ao material, o senso de qualidade na Alemanha está em processo de rápida melhoria.

Contudo, mesmo esse êxito está longe de completar a tarefa da Werkbund. Bem mais importante do que o mundo material é o espiritual; acima da finalidade relativa ao material e à tecnologia ergue-se a forma. Essas três coisas poderiam ser realizadas irrepreensivelmente, mas, enquanto não houver forma, nós devemos continuar vivendo em um mundo rude e bruto.

Assim sendo, estamos cada vez mais claramente confrontados pela tarefa muito maior, muito mais importante, de reviver a compreensão intelectual e reanimar o sentido arquitetônico. Afinal, a cultura arquitetônica é e continua sendo o verdadeiro indicativo da cultura de uma nação como um todo.

Se uma nação produz bons móveis e boas luminárias, mas diariamente levanta os edifícios piores possíveis, este só pode ser o sinal de condições heterogêneas, não esclarecidas, condições cuja própria inconsistência é a prova da falta de disciplina e organização.

Sem um respeito total pela forma, a cultura é impensável, e a falta de forma é sinônimo de falta de cultura. A forma é uma necessidade espiritual mais elevada, no mesmo grau em que a limpeza é uma necessidade corporal mais elevada.

A vulgaridade da forma causa no homem realmente cultivado um sofrimento quase físico; em sua presença, ele tem o mesmo sentimento de desconforto produzido por sujeira e pelo mau cheiro.

Mas, à medida que um senso de forma ainda não foi desenvolvido nos membros cultos de nossa nação num nível de intensidade igual ao da sua necessidade de lençóis lavados, ainda estamos muito afastados das condições que poderiam de alguma forma ser comparadas com épocas de alto florescimento cultural.

Sobre o Autor(a):

Hermann Muthesius (1861-1927) foi um dos pioneiros na defesa de uma arte industrial na Alemanha. Nascido na região de Weimar, filho de um pequeno empreiteiro, estudou filosofia, história da arte e arquitetura.

Como arquiteto, esteve envolvido em projetos de residências e em construções públicas – tendo sido funcionário do departamento de arquitetura do governo entre 1893 e 1894.

Em 1896, Muthesius foi enviando pelo governo à embaixada alemã em Londres com a missão de pesquisar as realizações artísticas e industriais da Inglaterra.

Durante os sete anos em que viveu lá, escreveu artigos sobre arte e arquitetura inglesas para diversos periódicos na Alemanha.

Seus textos geralmente foram marcados por uma mistura de admiração e crítica em relação ao movimento Arts and Crafts liderado por William Morris.

Em 1903, Muthesius retornou ao seu país e trabalhou para o ministério do comércio.

Suas pesquisas sobre a maneira inglesa de projetar resultaram em publicações como A nova arquitetura de igrejas na Inglaterra, de 1901, A casa inglesa, de 1904, e Casa de campo e jardim, de 1907.

Entretanto, ao elogiar o estilo inglês, acabou sendo acusado de deslealdade à produção alemã. Setores da imprensa, aliados à Associação Profissional para os Interesses Econômicos de Artes e Ofícios, mobilizaram-se para que Muthesius fosse proibido de falar em público e publicar textos.

Essa mobilização teve o efeito colateral de provocar a dissidência dos simpatizantes de Muthesius e, indiretamente, contribuiu para a criação da Deutscher Werkbund (1): o empresário Peter Bruckmann, por exemplo, deixou a Associação Profissional para os Interesses Econômicos de Artes e Ofícios para em seguida, em 1907, ser um dos fundadores e presidentes da Deutscher Werkbund.

Nota

(1) Conferir: http://www.agitprop.com.br/?pag=repertorio_det&id=77&titulo=repertorio

Comentário

Mila Waldeck

O discurso Onde Estamos?, proferido no encontro de 1911 da Deutscher Werkbund, é intermediário entre a publicação de Arte e máquina (2), de 1902, e a famosa disputa entre Muthesius e Van de Velde, ocorrida em 1914.

Se em Arte e máquina Muthesius proclamava a possibilidade e necessidade de uma arte industrial, em oposição ao ofício manual característico do movimento Arts and Crafts, aparentemente em 1911 a industrialização já não era mais combatida pelos interlocutores de Muthesius. Este último passou então a tratar o Arts and Crafts como parte de um passado ao qual uma linha evolutiva dava continuidade.

Partindo da ideia de que há uma conotação superior e espiritual na forma em geral e, portanto, na forma dos produtos industrializados em particular, Muthesius acreditava que a concepção formal na indústria e na arquitetura deveria caber a um grupo seleto de pessoas.

O pressuposto de uma universalidade da boa forma está na raiz de seus argumentos a favor da padronização na indústria, à qual Van de Velde se opunha. Se por um lado a faceta universalizante do pensamento de Muthesius encontrou resistência, por outro lado uma outra faceta de suas doutrinasera aceita com mais facilidade no círculo de Muthesius: o princípio de que a criação das formas dos produtos industrializados deve ser atribuída a uma elite artística e intelectual.

Nota

(2) Publicado na revista Dekorative Kunst.

 


Comentários

Silvia Steinberg
29/04/2013

Esse texto, fundamental para o entendimento da atividade do designer recebe tradução primorosa de Mila Waldeck. Parabens a Mila e a Agitprop. Os mais velhos se emocionam, as novas gerações agradecem! — "Sem um respeito total pela forma, a cultura é impensável, e a falta de forma é sinônimo de falta de cultura. A forma é uma necessidade espiritual mais elevada, no mesmo grau em que a limpeza é uma necessidade corporal mais elevada."

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