Ano: VI Número: 58
ISSN: 1983-005X
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Um Prometeu cauteloso?
Bruno Latour
Tradutor(a):Daniel B. Portugal e Isabela Fraga

Palestra para o encontro Networks of Design, da Design History Society. Falmouth, Cornualha, 3 de setembro de 2008.

Durante a festa de lançamento do encontro Networks of Design, eu tentava compreender o quanto o termo “design” havia se ampliado quando fui convidado a visitar uma exposição intitulada “Reimaginando a Cornualha”! Eu estava ciente de que corporações precisavam ser reestruturadas, ambientes naturais recuperados, que cidades precisavam ser remodeladas e terras devastadas recultivadas. Eu sabia que bairros tinham que ser embelezados e plataformas políticas elaboradas, que interiores precisavam ser redecorados e layouts de jornais reestilizados. A exposição sobre a Cornualha confirmou que eu estava de fato no caminho certo: se províncias inteiras podem ser reelaboradas através do design (1), então o termo já não tem nenhum limite.

Quando eu era jovem, a palavra design (importada do inglês para o francês) não significava mais do que agora chamaríamos de “relooking” em francês (uma bela palavra inglesa que, infelizmente, não existe em inglês). O ato de “relook” significa dar uma nova e bela aparência ou forma a alguma coisa – uma cadeira, uma faca, um carro, um pacote, uma lâmpada, um interior – que de outra forma permaneceria desajeitado, duro ou cru demais caso servisse apenas a sua função. “Design”, neste sentido antigo limitado, era uma forma de revestir a eficiente porém entediante prioridade dos engenheiros e das equipes de vendas. O design acontecia quando se acrescentava um verniz formal às suas criações, alguns elementos superficiais que poderiam fazer diferença em questões de gosto e moda. Mesmo que o design pudesse ser bastante admirado, ele era sempre considerado uma vertente de um caminho alternativo: preste atenção não somente à função, mas também ao design. Essa dicotomia se sustentava mesmo que o bom design fosse então aquele que, na melhor tradição modernista (como no funcionalismo), seguisse o máximo possível a função. O “design” era sempre considerado nesta balança do “não somente..., mas também”. Era como se houvesse, de fato, duas formas bastante diferentes de encarar um objeto: uma delas, através de sua materialidade intrínseca, e, a outra, através de seus aspectos mais estéticos ou “simbólicos”.

Eu sei que essa é uma descrição um tanto pobre daquilo que vocês atualmente chamam de “design” (sei muito bem que o uso francês do termo é um bem mais restrito que o escandinavo ou o inglês). Entretanto, quero utilizar essa definição da minha juventude como uma base a partir da qual seja possível compreender a extraordinária carreira desse termo. De um elemento superficial nas mãos de profissionais pouco sérios que acrescentavam recursos sob a supervisão de profissionais bem mais sérios (engenheiros, cientistas, contadores), o design tem se expandido continuamente, ganhando cada vez mais importância para o cerne da produção. E mais, o design se estendeu dos detalhes de objetos cotidianos para cidades, paisagens, nações, culturas, corpos, genes e, como argumentarei mais à frente, para a própria natureza – a qual precisa urgentemente ser reelaborada. É como se o sentido da palavra tivesse crescido tanto naquilo que os lógicos chamam de “compreensão” quanto no que eles denominam “extensão”. Primeiro, ele cresceu em compreensão – pois tem se apropriado de mais e mais aspectos do que uma coisa é. Atualmente, qualquer pessoa com um iPhone sabe que seria absurdo distinguir aquilo que foi elaborado através do design daquilo que foi planejado, calculado, arrumado, arranjado, empacotado, embalado, definido, projetado, pensado, escrito em código etc. De agora em diante, “fazer design” pode significar igualmente cada um desses verbos. Em segundo lugar, o sentido da palavra “design” cresceu em extensão – ele é aplicável a estruturas cada vez maiores de produção. O espectro de coisas que podem ser elaboradas através do design é, agora, infinitamente maior do que uma lista limitada de bens cotidianos ou de luxo.

O meu interesse na ampliação em compreensão e em extensão do termo design não se deve a nenhum conhecimento íntimo da prática do design (sei menos ainda sobre sua história e espero que os muitos historiadores do conceito entre vocês não me contradigam muito). Ainda assim, encaro sua expansão como um indício fascinante de uma mudança na forma como lidamos com objetos e ações de uma maneira geral. Se é verdade, como propus, que nós jamais fomos modernos; e se é verdade, como consequência, que questões de fato agora claramente se tornaram questões de interesse, (2) então a seguinte observação tem lógica: a divisão tipicamente modernista entre materialidade, de um lado e design, de outro, está lentamente se dissolvendo. Quanto mais os objetos se transformam em coisas – isto é, quanto mais questões de fato se transformam em questões de interesse –, mais eles se traduzem inteiramente em objetos de design.

Se é verdade que a atual situação histórica é definida por uma completa desconexão entre duas grandes narrativas alternativas – uma baseada na emancipação, no desapego, na modernização, no progresso e no controle; e outra, completamente diferente, baseada no apego, na precaução, no envolvimento, na dependência e no cuidado –, então a pequena palavra “design” pode servir como um importante medidor para nos ajudar a detectar o rumo que tomamos e o quão bem tem se saído o modernismo (e também o pós-modernismo). Para colocar a questão de maneira mais provocativa, eu diria que design é um dos termos que substituiu a palavra “revolução”! Ao dizer que todas as coisas têm que ser elaboradas e reelaboradas através do design – incluindo a natureza –, nós sugerimos implicitamente algo como: “elas não serão nem revolucionadas e nem modernizadas”. Para mim, a expansão da palavra design serve como um indicativo que poderia provar quão profundamente nós deixamos de acreditar que fomos modernos. Em outras palavras, quanto mais nós nos vemos como designers, menos nos vemos como modernizadores. É dessa posição filosófica ou antropológica do design que eu me dirijo a vocês hoje.

 

Cinco vantagens do conceito de “design”

Ouso articular esse estranho argumento baseado (bem superficialmente, concordo) nas várias nuances da própria palavra “design”. A fraqueza desse conceito vago me faz crer que podemos considerá-lo um sintoma claro de uma ampla mudança em nossa definição coletiva de ação. A primeira parte desta palestra será dedicada a analisar cinco conotações sucessivas do conceito de design. Na segunda parte, farei uma introdução à filosofia do design de Peter Sloterdijk. E, finalmente, encerrarei com uma breve conclusão sobre como agrupar as coisas através do desenho (3), isso é, como fazer design.

Como um conceito, design sugere uma humildade que parece ausente da palavra “construção”. Por conta de suas raízes históricas como mero acréscimo à “real” praticidade, à dura materialidade e às funções dos objetos cotidianos, sempre há certa modéstia na proposta de elaborar algo novo através do design. No design, não existe a ideia de fundação. Para mim, dizer que se planeja elaborar algo através do design não carrega o mesmo risco de arrogância do que dizer que se vai construir algo. Prometeu sem dúvida ficaria furioso se fosse apresentado como designer a algum outro herói da Antiguidade. Assim, a expansão do termo “design” é uma indicação (fraca, é bem verdade) do que poderíamos denominar uma teoria pós-prometeica da ação. Essa teoria da ação emergiu exatamente no momento (e esse é o ponto realmente interessante) em que todas as coisas, cada detalhe da nossa existência diária, do modo como produzimos comida ao modo como viajamos, construímos casas e carros, clonamos vacas etc., devem ser reelaborados. É exatamente quando as dimensões das tarefas a serem feitas foram enormemente ampliadas pelas várias crises ecológicas que um entendimento não prometeico ou pós-prometeico da ação domina a consciência pública.

Uma segunda – e talvez mais importante – implicação do design é uma atenção aos detalhes que está completamente ausente do sonho megalomaníaco da ação heroica prometeica. “Siga em frente, rompa radicalmente com o passado e as consequências se resolverão automaticamente!”. Esse era o caminho antigo – construir, destruir, transformar radicalmente: “après moi le déluge!” (4). Mas essa nunca foi a maneira de se encarar um projeto de design. Uma atenção obsessiva aos detalhes sempre esteve ligada à própria definição de habilidade em design. E “habilidade” é, com efeito, um termo também relacionado ao design, do mesmo modo que o design é associado às palavras “arte” e “perícia” (5).  Além da modéstia, há um senso de destreza, habilidade e obsessiva atenção aos detalhes que compõe uma conotação-chave do design. Este ponto vale ser reiterado porque é impensável fazer qualquer ligação dessas características do design com os impulsos modernizadores e revolucionários do passado recente. Pelo contrário, atenção cuidadosa aos detalhes, perícia e habilidade eram vistas justamente como características reacionárias, uma vez que somente atrasariam a rápida marcha do progresso. A expansão do conceito de design indica uma mudança profunda em nossa constituição emocional: no momento mesmo em que a escala do que precisa ser refeito se tornou infinitamente maior (nenhum revolucionário político comprometido a desafiar os modos capitalistas de produção jamais considerou reelaborar o clima da Terra), a noção do que significa “fazer” alguma coisa também está sofrendo profundas modificações. Essas mudanças são tão profundas que as coisas já não são “feitas” ou “fabricadas”, mas sim cuidadosamente – ou cautelosamente – elaboradas através do design. É como se tivéssemos que juntar a tradição da engenharia com o princípio da cautela; é como se tivéssemos que imaginar Prometeu roubando o fogo do céu de maneira cautelosa! O que está claro é que, nessa junção histórica, dois conjuntos de paixões completamente estranhas entre si (isto é, estranhas para o ethos modernista) precisam ser recombinadas e reconciliadas.

A terceira conotação do termo design que me parece bastante relevante está ligada ao fato de que, quando analisamos o design de algum artefato, estamos inquestionavelmente lidando com significados – sejam eles comerciais, simbólicos ou de outra ordem. O design se oferece à interpretação; ele é feito para ser interpretado na linguagem dos signos. No design há sempre, como dizem os franceses, um dessein, ou, em italiano, designo. É claro que, em sua forma mais fraca, o design acrescenta apenas significados superficiais ao que era matéria bruta e pura eficiência. Mas à medida que o design se infiltra em mais e mais níveis dos objetos, ele traz consigo um novo tipo de atenção aos significados. Sempre que você pensa em alguma coisa como objeto de design, você traz todas as ferramentas, habilidades e perícias da interpretação para a análise dessa coisa. É, portanto, extremamente importante atentarmos para o quão profundamente encaramos os artefatos cotidianos como objetos de design. Pensar sobre os artefatos em termos de design significa concebê-los cada vez menos como objetos modernistas e cada vez mais como “coisas”. Usando minha linguagem: os artefatos estão se tornando concebíveis como conjuntos complexos de questões contraditórias (lembrando que esse é o sentido etimológico da palavra “thing” em inglês (6), bem como em outras línguas europeias) (7). Quando as coisas são consideradas como bem ou mal elaboradas, elas não se apresentam mais como questões de fato. Assim, à medida que sua apresentação como questões de fato se enfraquece, seus lugares entre as muitas questões de interesse são fortalecidos.

A transformação dos objetos em signos foi fortemente acelerada pela proliferação dos computadores. É óbvio que a digitalização teve grande influência na expansão da semiótica até o cerne da objetividade: uma vez que quase todas as partes dos artefatos digitais são “escritas” em códigos e softwares, não espanta que a hermenêutica tenha penetrado cada vez mais na própria definição de materialidade. Se o livro de Galileu sobre a natureza foi escrito em termos matemáticos, expandindo prodigiosamente o império das interpretações e exegeses, essa expansão é ainda mais verdadeira hoje, quando mais e mais elementos do nosso entorno são literalmente, e não metaforicamente, escritos em termos matemáticos (ou pelo menos computacionais). Embora a velha dicotomia entre função e forma pudesse se sustentar vagamente para um martelo, uma locomotiva ou uma cadeira, ela se torna ridícula quando aplicada a um telefone celular. Onde seria traçada a linha entre forma e função? O artefato é composto de texto de cima a baixo! Mas isso não é verdade apenas para artefatos e aparelhos computadorizados, mas também para a boa e velha materialidade: o que são as nanotecnologias e biotecnologias se não a expansão do design para outro patamar? Aqueles que conseguem fazer átomos individuais escreverem as letras “IBM”, que implantam etiquetas de direitos autorais em DNAs ou idealizam nanocarros que “correm” em quatro rodas certamente se consideram designers. Aqui, uma vez mais, a matéria é absorvida pelo significado (ou melhor, pela disputa do significado) de uma maneira cada vez mais íntima.

A quarta vantagem que vejo no termo “design” (além de sua modéstia, de sua atenção aos detalhes e das habilidades semióticas que ele sempre carrega) é que ele nunca é um processo que começa do zero: fazer design é sempre fazer um redesign. Sempre há algo que existe primeiro, que já está dado, como uma questão ou um problema. O design é uma tarefa subsequente que visa tornar algo mais vivo, mais comercial, mais usável, mais agradável ao usuário, mais aceitável, mais sustentável etc., dependendo das diversas restrições com as quais o projeto precisa lidar. Em outras palavras, há sempre algo de reparatório no design. Essa é a vantagem da conotação “não somente, mas também” que critiquei acima. Essa divisão é certamente uma fraqueza (sempre existe a tentação de ver o design como um adendo, uma tarefa secundária, menos séria que a engenharia, o comércio e a ciência), mas ela é também uma imensa vantagem quando comparada à ideia de criação. Fazer design nunca é criar ex nihilo. É curioso como os criacionistas estadunidenses usam o termo “design inteligente” como uma espécie de substituto para “Deus, o Criador”. Eles não parecem perceber o enorme abismo que existe entre criar e fazer design. Os designers mais inteligentes nunca começam de uma tábula rasa. Deus, o designer, é na verdade um redesigner de algo que já estava lá – e isso é ainda mais verdadeiro para Seu Filho, assim como para o Espírito Santo, já que os dois são enviados para redimir aquilo que havia dado errado... Se a humanidade “foi feita (ou eu deveria dizer “elaborada”?) à imagem de Deus”, então ela também deve aprender que as coisas nunca são criadas, mas sim cuidadosa e modestamente reelaboradas. É nesse sentido que vejo a proliferação do termo design como um claro substituto para revolução ou modernização. E o faço também porque há sempre algo ligeiramente superficial no design, algo clara e explicitamente transitório, algo ligado à moda – e, consequentemente, às oscilações da moda –, algo ligado aos gostos e, portanto, relativo. Fazer design é o antídoto para os atos de fundar, colonizar, estabelecer ou romper com o passado. É o antídoto para a arrogância e para a busca de certezas absolutas, começos absolutos e de desvios radicais.

A quinta e definitiva vantagem do conceito de design é que ele necessariamente envolve uma dimensão ética que está ligada à óbvia questão do bom design versus o mau design. No estilo modernista, bondade ou maldade eram qualidades que questões de fato não poderiam de maneira alguma possuir. Elas deveriam ficar fora das disputas e afastadas de qualquer julgamento normativo. Tanto era assim que todo o seu propósito era tornar possível a distinção fato/valor. “Nós estamos aqui, queira você ou não”. Mas é fácil entender que, quando se diz que algo é elaborado através do design, você está não somente autorizado, mas também compelido, a perguntar se o design foi bem ou mal feito. A expansão do design para a definição interna das coisas carrega consigo não somente significado e hermenêutica, mas também moralidade. É como se a materialidade e a moralidade finalmente se unissem. Isso é muito importante porque, se você começa a reelaborar cidades, paisagens, parques naturais, sociedades, bem como genes, cérebros e chips, nenhum designer vai poder se esconder atrás da antiga proteção das questões de fato. Nenhum designer vai poder dizer: “estou somente relatando aquilo que existe”, ou “estou simplesmente tirando as consequências das leis da natureza”. Ao expandir o design e torná-lo relevante em todos os lugares, os designers enfrentam também a questão da moralidade. Voltarei a esse ponto na conclusão: basta dizer, por ora, que essa dimensão normativa que é intrínseca ao design oferece um bom ponto de partida para estender as questões do design à política. Uma política das questões de fato e dos objetos sempre pareceu inverossímil; uma política de coisas e questões elaboradas através do design é um tanto mais razoável. Se as coisas, ou Dinge, são reuniões, como Heidegger costumava defini-las, então é preciso apenas um pequeno passo para considerar todas as coisas como resultado de uma atividade conhecida como “design colaborativo” na Escandinávia. Essa atividade é, na verdade, a própria definição da política das questões de interesse, uma vez que todos os designs são designs “colaborativos” – mesmo que, em alguns casos, os “colaboradores” não sejam todos visíveis, bem-vindos ou voluntários.

Um pequeno parêntesis sobre nossas duas disciplinas: quando os acadêmicos do campo dos estudos de ciência e tecnologia (ECT) começaram a revisitar a antiga tradição materialista há cerca de quarenta anos, também eles transformaram profundamente objetos em projetos. Também eles levaram significado para aquilo que era definido como meros “condicionantes materiais”; também eles questionaram o argumento que opõe forma e função; transformaram questões de fato em complexos e contraditórios aglomerados de conflitos entre humanos e não humanos; também eles demonstraram que “artefatos possuem política” e que um parlamento de coisas podia ser reunido. Mas por causa da palavra “construção” (usada especialmente na infame expressão “construção social”), eles também ficaram divididos pela oposição modernista entre o que era social, simbólico, subjetivo, vivido, e o que era material, real, objetivo e factual. Não importa quantos esforços fossem feitos para escapar da armadilha que a constituição moderna havia posto no caminho dos questionamentos empíricos – os estudos de ciência e tecnologia sempre caíam nela (será que as coisas teriam sido melhores se falássemos de “design social” em vez de “construção social”? Eu duvido). A armadilha era quase inescapável. Era quase inescapável, digo, enquanto permanecêssemos oficialmente modernos. Mas o que acho tão interessante é que, na expansão do design, esse conceito passou pelas mesmas fantásticas transformações que o meu campo de estudos. Os ECT, que até alguns anos atrás não eram mais que um pequeno subcampo das ciências sociais (por demais sociais!), receberam agora um formidável suporte de um movimento muito mais amplo. O que antes era uma afirmação ligeiramente forçada e claramente escandalosa – qual seja, a de que não há objetos, mas somente coisas e agrupamentos em disputa – está rapidamente se tornando senso comum. Tudo o que era antes concebido como avanços objetivos, materiais, duros e inquestionáveis (lembram do “irresistível caminho do progresso”, do “calor branco da tecnologia”?) (8)agora se dissipou no ar. Sim, tudo que foi projetado durante as passadas quatro ou cinco revoluções industriais teve de ser reelaborado – incluindo a Cornualha. É o mesmo mundo material, mas agora ele precisa ser refeito com uma noção completamente diferente do que é fazer alguma coisa. O que desapareceu foi o domínio – a estranha ideia de domínio que se recusava a incluir o mistério das consequências não previstas.

Evidentemente, todas essas cinco dimensões do design, bem como o desenvolvimento dos ECT, poderiam ser encaradas como claros sinais de pós-modernismo, como um quieto e preguiçoso abandono das tarefas do modernismo prometeico. Alguns modernistas incondicionais pensam assim, mas eu não creio que seja o caso. Como mencionei antes, a proliferação do termo “design” não ocorre num momento no qual há menos coisas a se fazer; ela ocorre num momento em que há mais coisas a se fazer. Infinitamente mais, uma vez que agora todo o tecido da vida é objeto de interesse devido à crise ecológica. Aquilo que nenhuma revolução jamais contemplou – a reconstrução de nossa vida coletiva na Terra – deve ser levado a cabo com uma atitude exatamente oposta às atitudes revolucionárias e modernizantes. É isso que torna o espírito do tempo tão interessante. O presidente Mao estava certo, apesar de tudo: a revolução precisa ser sempre revolucionada. O que ele não previu é que a nova energia “revolucionária” seria tirada de um conjunto de atitudes difíceis de aparecer em movimentos revolucionários: modéstia, cuidado, precaução, habilidade, significado, atenção aos detalhes, conservação cuidadosa, redesign, artificialidade e modas sempre transitórias. Nós precisamos ser radicalmente cuidadosos, ou cuidadosamente radicais... Que tempo estranho para se viver.

 

Dasein ist Design

A melhor forma de resumir a primeira parte desta palestra é citar um maravilhoso jogo de palavras feito por Henk Oosterling: “Dasein ist design”. Oosterling é um especialista no trabalho de Peter Sloterdijk, o grande pensador alemão a quem agora me voltarei para continuar essa pequena reflexão sobre filosofia do design. Ao levar a sério o que Heidegger apenas abstratamente quis dizer com o termo Dasein, Sloterdijk conseguiu extirpar a tradição filosófica ocidental do caminho bifurcado através do qual ela sempre lidou com a materialidade (sempre, isto é, desde o século XVII). Essa seriedade a respeito do Dasein é o que torna sua filosofia tão interessante para pessoas como vocês, que são bombardeados com propostas para reelaborar todas as coisas, de cadeiras a climas. Vocês não podem mais se prender à ideia de que existe, de um lado, condicionantes materiais e objetivas e, de outro, condicionantes simbólicas, humanas e subjetivas (Na verdade, sinto que os organizadores desta conferência deveriam ter convidado Sloterdijk para dar esta palestra em vez de mim, mas meu desejo de visitar uma Cornualha que eu havia apenas “imaginado” até agora me fez esconder tal afirmação até esta noite) (9).

O motivo pelo qual vocês deveriam tê-lo convidado é que Sloterdijk abordou a ampliação no entendimento e na extensão da noção de design desde muito cedo e muito literalmente. Tão literalmente, na verdade, que ele foi nomeado reitor de uma faculdade em Karlsruhe – a Staatliche Hochschule für Gestaltung (gestalt significa design). É uma instituição de artes e filosofia extremamente original (sediada, aliás, na mesma fábrica reformada em que se localiza o Centro de Arte e Mídia de Karlsruhe, o ZKM, onde tive o prazer de realizar a curadoria das exposições Iconoclash e Making Things Public).

Quando dizemos que o “Dasein está no mundo”, costumamos passar muito rapidamente pela proposição “no”. Mas não Sloterdijk. No quê?, ele pergunta. “No” onde? Você está em um quarto? Em um anfiteatro com ar condicionado? E, se for o caso, que tipo de bombas de ar e fontes de energia mantêm a refrigeração? Você está do lado de fora? Não existe fora: fora é outro dentro com outro controle climático, outro termostato, outro sistema de refrigeração. Você está em público? Os espaços públicos também são espaços, ora. Eles não são diferentes, nesse aspecto, dos espaços privados. São simplesmente organizados de modo diverso, com arquiteturas diferentes, pontos de entrada diferentes, sistemas de vigilância diferentes, sonoridades diferentes. Tentar filosofar sobre o que é ser “jogado no mundo” sem definir mais precisamente ou mais literalmente (Sloterdijk é sobretudo literal em seu uso de metáforas) os tipos de embalagens nos quais os seres humanos são jogados seria como tentar mandar um cosmonauta para o espaço sideral sem um traje espacial. Seres humanos desnudos são tão raros quanto cosmonautas desnudos. Definir os humanos significa definir as embalagens, os sistemas de suporte de vida, o Umwelt que os permite respirar. É exatamente isso que o humanismo nunca percebeu (é por isso que Habermas ficou tão ofendido com Sloterdijk e o atacou de maneira mesquinha: seres humanos desnudos de um lado, seres humanos totalmente equipados com sistemas de suporte de vida de outro – é claro que não havia jeito de esses dois pensadores alemães se entenderem).

Espero que vocês estejam começando a perceber por que Sloterdijk é o filósofo de vocês: tal como um traje espacial ou uma estação espacial são elaborados de maneira completamente artificial e cuidadosa, assim são elaboradas também todas as embalagens que constituem o frágil suporte de vida dos seres humanos (Sloterdijk chama tais embalagens de “esferas”, e utiliza o termo “esferologia” para nomear sua empreitada teórica). Os seres humanos precisam ser tratados com extrema precaução desde o útero (natural ou artificial) no qual se desenvolvem (Sloterdijk define a filosofia como um tipo de obstetrícia!) até o lugar onde eles sobrevivem e morrem. O que é tão importante nas metáforas estendidas exploradas por Sloterdijk até o fim é que elas começam a resolver exatamente o problema que eu levantei no início desta palestra. Como podemos reconciliar os conjuntos tão diferentes de emoções, paixões e pulsões mobilizados pelas duas grandes narrativas concorrentes da modernidade – a da emancipação (a história oficial) e a do apego (a história encoberta)? Quando você confere seu traje espacial antes de sair da sua nave, você está sendo radicalmente cauteloso e cautelosamente radical... Você está dolorosamente ciente do quão precário você é, mas, ao mesmo tempo, você está completamente preparado para projetar e elaborar com detalhamento obsessivo aquilo que é preciso para sobreviver. Enquanto as filosofias da história modernas ou antimodernas sempre consideram somente uma narrativa (aquela do progresso ou a do fracasso do progresso), Sloterdijk é um dos raros pensadores que mostra como as histórias da emancipação e do apego são uma única e mesma história. Essa unificação é possível contanto que modifiquemos completamente o que significa estar “no mundo”: o cosmonauta é emancipado da gravidade porque ele ou ela nunca vive uma fração de segundo fora de seu suporte de vida. Ser emancipado e ser apegado são duas encarnações do mesmo evento, basta notar como as atmosferas artificiais são bem ou mal elaboradas.

O conceito fundamental para reconciliar esses dois conjuntos de paixões e para inventar esse estranho papel de um Prometeu precavido é o de explicitação. A explicitação é uma consequência do conceito de embalagem. Embalagem é um termo que certamente chamará a atenção dos designers e dos arquitetos: nós estamos embalados, enredados, cercados; nunca estamos do lado de fora sem termos criado uma outra embalagem mais artificial, mais frágil, mais desenvolvida. Transitamos sempre de uma embalagem a outra, nunca de uma esfera privada para o Grande Lado de Fora.

O modernismo, nas mãos de Sloterdijk, não é mais um conceito. É um lugar, um design, um estilo. É um tipo bem específico de arquitetura ao qual todo o segundo volume de Esferas é dedicado: o dos Globos. Um modernista é alguém que vive sob um vasto domo e que vê as coisas como se estivesse sentado sob uma gigantesca forma arquitetônica: o globo da ciência, o globo da razão, o globo da política. Para o modernista, o humanista é aquele que lê um livro debaixo de uma luminária ou que se senta, vestindo uma espécie de toga romana, nas escadas de um enorme anfiteatro sob o afresco de um domo gigante... A diferença é que, na arquitetura modernista, os suportes de vida necessários para a sustentabilidade desse domo ou globo não foram explicitados. Um modernista toma por certo que sempre haverá ar, espaço, água, calor etc. para o desenvolvimento da sua “visão global”. Mas não há nada global na globalização. O global está sempre cheio de absurdos, inflado de ar quente. E, claro, soprar ar quente sempre requer algum tipo de mecanismo, uma bomba de ar, um secador de cabelo – um secador de cabelo elaborado através do design! O que aconteceu na segunda metade do século passado é que o modernismo desapareceu à exata medida que os sistemas de suporte de vida se tornaram mais explícitos, progressivamente. As crises ecológicas, sob esse ponto de vista, não passam da lenta e dolorosa compreensão de que não existe mais o lado de fora. Isso significa que nenhum dos elementos necessários para a sustentação da vida podem ser tomados como certos. Para se viver num gigantesco globo inflado, são necessários um poderoso ar condicionado e uma poderosa bomba de ar para mantê-lo inflado. Sim, os globos modernistas murcharam: o destino do modernismo tem sido semelhante ao daqueles dirigíveis como o Zeppelin ou o Hindenburg.

Vemos, portanto, que aquilo antes chamado de “estilo modernista” na história do design deveria ganhar agora maior longevidade e um significado mais profundo. Ele seria a própria forma de apresentação das coisas como questões de fato, que agora se torna visível como um estilo – e um estilo que está se modificando na frente dos nossos olhos. A estética das questões de fato sempre foi exatamente isso: uma estética historicamente situada, uma forma de iluminar os objetos, de enquadrá-los, de apresentá-los, de situá-los em relação ao olhar dos observadores, de elaborar os interiores nos quais eles são apresentados – e, é claro, a política com a qual eles são (eram) tão fortemente associados (10).

O que me parece tão importante na noção de explicitação, de colocar embalagens dentro de embalagens, é que ela é uma forma poderosa de resgatar a ciência e a tecnologia ao modificar completamente o nosso entendimento do que significa uma vida artificial sustentável. É nesse sentido, com efeito, que Sloterdijk é O filósofo do design. Se, há pouco, eu estava certo quanto às cinco razões pelas quais a noção de design era um substituto tão poderoso das noções de fazer e construir, então a explicitação pode nos ajudar a compreender que é possível rematerializar sem carregar, junto com a noção de matéria, toda a bagagem modernista das questões de fato. É exatamente isso que faz Sloterdijk. Não existe nenhum filósofo contemporâneo mais interessado do que ele na materialidade, na engenharia, na biotecnologia, no design propriamente dito, nas artes contemporâneas e na ciência de forma mais geral. Entretanto, quando ele lida com materialidades, não é como se elas fossem um acumulado de questões de fato que estabeleceriam indisputáveis necessidades naturais como palavras finais em debates sociais ou simbólicos. Ao contrário, quando ele reforça a materialidade de algo, ele torna explícita mais uma frágil embalagem na qual estamos enredados. Esse enredamento é tão relevante para as embalagens da biotecnologia quanto para estações espaciais.

Essa é exatamente a razão pela qual Habermas não pôde aceitar o argumento de Sloterdijk. Para um bom humanista modernista, quando alguém começa a falar sobre suportes de vida, sobre as condições necessárias para “cultivar seres humanos”, sobre o ar condicionado que os faria respirar de maneira segura, isso equivale a um pretexto para um mundo Orwelliano, para a eugenia. O que Habermas não consegue perceber, porém, é que quando os humanistas acusam as pessoas de “tratar os humanos como objetos”, eles, inadvertidamente, estão tratando injustamente os objetos. Um humanista não pode imaginar que objetos podem ser coisas, que questões de fato podem ser questões de interesse, que toda a linguagem da ciência e da engenharia pode ser representada na forma de outra coisa que não as entediantes fileiras de inquestionáveis necessidades que o modernismo popularizou. Os humanistas estão interessados apenas nos seres humanos; o resto, para eles, é mera materialidade ou objetividade fria. Mas Sloterdijk não trata os humanos como questões de fato, como alegam os humanistas. Em vez disso, ele trata tanto os seres humanos quando os não humanos como “questões de grave e cuidadoso interesse”. Ao tratar os suportes de vida dos seres humanos como questões de interesse, nós empilhamos interesses sobre interesses, nós embalamos, isto é, inserimos os humanos em um número cada vez maior de elementos cuidadosamente explicitados, protegidos, conservados e mantidos (a imunologia é, para Sloterdijk, a grande filosofia da biologia).

Essa pequena mudança na definição de matéria (11) modifica tudo. Ela permite reutilizar todas as noções de materialidade e artificialidade libertando-as das restrições impostas pelo antigo estilo modernista das questões de fato. Em outras palavras, nós podemos ter ciência e tecnologia sem que isso implique em naturalização. Não apenas a natureza como o lado de fora da ação humana desapareceu (isso já se tornou senso comum); não apenas “natural” se tornou um sinônimo de “cuidadosamente administrado”, “habilidosamente encenado”, “artificialmente mantido”, “inteligentemente elaborado” (isso é especialmente válido para os assim chamados “parques naturais” ou “alimentos orgânicos”); mas também a própria ideia de que usar o conhecimento dos cientistas e engenheiros para lidar com uma questão é necessariamente o mesmo que recorrer às inquestionáveis leis da natureza está se tornando obsoleta. Recorrer aos cientistas e engenheiros está rapidamente se tornando outra forma de perguntar: “como isso pode ser mais bem elaborado?”. A bricolagem e as formas de pensar costumeiramente associados ao design dominaram a natureza. Na verdade, elas são inerentes à natureza – se considerarmos a evolução darwinista como uma forma inteligente de bricolagem, de “design inteligente”... Mesmo que cego.

É até compreensível que, quando Sloterdijk levantou a questão de como os seres humanos poderiam ser elaborados através do design – ou seja, criados artificialmente –, isso tenha evocado o antigo fantasma das manipulações eugênicas. Mas as similaridades entre esses dois projetos se mostram completamente superficiais sob um exame mais atento. Eles são similares somente da mesma forma que dois trens podem estar se movendo na mesma direção apesar de estarem diante de uma bifurcação nos trilhos que os levará para destinos completamente diversos. Habermas não percebeu essa bifurcação tão importante de se notar. Sim, seres humanos têm que ser artificialmente feitos e refeitos, mas tudo depende do que você entende por artificial e, mais ainda, do que você entende por “fazer”. Retornamos a Prometeu e à questão da criação. Somos capazes de ser o Deus do design inteligente? Esse é o cerne da questão. É por isso que é tão importante falar em design e não em construção, criação ou fabricação. A noção de design, como apontei antes, permite levantar não somente a questão semiótica do significado, mas também a questão normativa do bom e do mau design. Isso vale para a manipulação de DNA, assim como para o controle climático, para gadgets, para modas, para cidades ou para paisagens naturais – um case perfeito de design, do início ao fim. A artificialidade é nosso destino, mas isso não significa aceitar para sempre a definição moderna de artefato como a invasão das questões de fato sobre a carne mais tenra da fragilidade humana. Para dizer de outra maneira, aludindo a uma linha de pensamento que está mais em voga: não há nada necessariamente pós-humano em embalar ou embrulhar seres humanos em seus suportes de vida. Os humanistas, assim como os pós-humanistas, parecem não ter outro repertório para falar da ciência e da tecnologia que não o idioma moderno das questões de fato.

A grande importância da filosofia de Sloterdijk (e, creio, o principal interesse da visão do designer sobre as coisas) é que ela oferece outro idioma. O idioma das questões de interesse resgata matéria, matérias e materialidade e as transforma em algo que pode e precisa ser cuidadosamente reelaborado. Isso é muito diferente da visão limitada dos humanistas sobre o que é o ser humano, mas é igualmente distinto do sonho pós-humanista dos ciborgues. Fica evidente que a definição coletiva do que devem ser os suportes de vida se torna o ponto-chave das investigações de orientação política. Quase nada resta da cenografia da teoria modernista da ação: nenhuma arrogância masculina, nenhuma pretensão de domínio, nenhum apelo ao lado de fora, nenhum sonho de expatriação num espaço exterior que não requeira nenhum tipo de suporte de vida, nenhuma natureza, nenhum grande gesto de desvio radical – e, entretanto, permanece a necessidade de refazer tudo mais uma vez, numa uma estranha combinação de conservação e inovação inédita na curta história do modernismo. Prometeu será, algum dia, cauteloso o suficiente para reelaborar o planeta?

Espero não ter me distanciado muito do tema ao propor (por ignorância, certamente) estes poucos passos rumo a uma filosofia do design ou ao apresentar Sloterdijk como seu principal pensador. Gostaria de concluir propondo um desafio para os especialistas em história do design aqui reunidos. Quando eu disse, mais cedo, que há algo inerentemente normativo no design por conta da pergunta que ele necessariamente levanta – “isto é um bom design ou um mau design?” –, também mencionei que esse era um bom ponto de partida para abordar a questão da política. Se todo o tecido da nossa existência terrena precisa ser reelaborado nos mínimos detalhes; se para cada detalhe a questão do bom ou mau design deve ser levantada; se cada aspecto se tornou uma questão de interesses em disputa e não pode mais ser estabilizado como uma questão de fato indisputável, então nós estamos obviamente entrando em um território político completamente novo. Como cada um de vocês sabe muito bem, as questões ecológicas possuem a característica perversa de se desmembrar em todos os tipos de caminhos contraintuitivos. Era provavelmente da ecologia que São Paulo falava quando disse: “eu não faço o bem que quero e faço o mal que odeio” (12). A ecologia política está trazendo dificuldades políticas para o debate público. Pois, de acordo com a maravilhosa e um tanto paulina fala de De Gaulle: “Se do bem apenas o bem resultasse, e se do mal apenas mal resultasse, governar seria bastante simples: um aldeão poderia fazê-lo”. Deixem-me levantar a questão do design, entendido literalmente no sentido etimológico de desenhar ou ainda de agrupar através do desenho. Como podemos agrupar através do desenho as questões de interesse de modo a oferecer para as disputas políticas uma visão geral, ou ao menos alguma visão, das dificuldades que nos envolverão a cada vez que precisarmos modificar os detalhes práticos da nossa existência material? Sabemos que, sempre que nos preparamos para trocar as lâmpadas incandescentes por outras que consomem menos energia, para cobrir nossa pegada de carbono, para viabilizar parques eólicos, para reintroduzir os lobos nos Alpes(13) ou para desenvolver combustível à base de milho, começará alguma polêmica que transformará nossas melhores intenções em um inferno. E nós não podemos acabar com a polêmica recorrendo a fatos indisputáveis porque os fatos então em constante disputa. Consequências não previstas estão agora na mente de todos. Prometeu se prepara para o pior.

O desafio é o seguinte: em sua longa história, o design realizou um maravilhoso trabalho inventando as habilidades práticas para desenhar objetos, do desenho de plantas arquitetônicas a modelos de escala, prototipagem etc. Mas o que sempre ficou faltando nesses maravilhosos desenhos (designs, em sentido literal) foi uma representação das controvérsias e das muitas partes interessadas em conflito que permeiam tais desenhos. Em outras palavras, vocês do design, assim como nós dos estudos de ciência e tecnologia, podemos insistir que objetos são sempre agrupamentos, reuniões no sentido heideggeriano, ou coisas e Dinge, e, entretanto, quatrocentos anos após a invenção do desenho em perspectiva, trezentos anos após a geometria projetiva, cinquenta anos após a criação do CAD, nós continuamos incapazes de agrupar através do desenho, de simular, de materializar, de aproximar, de modelar o que é uma coisa, em toda sua complexidade. Sabemos como desenhar, simular, materializar e a dar mais ou menos zoom nos objetos; sabemos movê-los no espaço 3D, fazê-los navegar pela res extensa virtual dos computadores, marcá-los com um grande número de dados etc. No entanto, estamos perfeitamente cientes de que o espaço no qual esses objetos parecem se mover tão facilmente é o mais utópico (ou melhor, atópico) dos espaços. Esses são os espaços de circulação menos realistas já imaginados. São espaços inadequados ao modo como arquitetos, engenheiros e designers desenham e modificam projetos, como direcionam a produção na fábrica ou como manipulam protótipos. Para usar mais uma vez o alemão: nós sabemos como desenhar Gegenstand, mas não temos ideia do que é desenhar Ding. Certa vez, pedi a um grande historiador da tecnologia para me enviar um desenho que fosse, na opinião dele, seu melhor desenho da maravilhosa e complexa história dos mecanismos sobre a qual ele escrevia há tanto tempo. Ele me enviou um rabisco que eu não teria coragem de mostrar aos meus alunos do primeiro semestre como exemplo do que seria uma coisa. Como esse rabisco poderia ser comparado à maneira confortável e suave com que os objetos flutuam através do assim chamado “espaço euclidiano” de um design de CAD, ou ao modo como eu posso visitar Falmouth antes de chegar lá por meio da viagem aparentemente suave do Google Earth?

Sei que esse é um encontro sobre história do design, mas qual é o propósito de estudar história do design se não elaborar um esboço para seu futuro? É possível pensar que toda a história dos desenhos técnicos e das formas de visualização científica de maneira mais geral foi uma das principais forças impulsionadores do desenvolvimento da ciência e da tecnologia em suas versões modernistas. É mais do que provável que o mesmo será verdade em relação ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia em suas versões livres das limitações modernistas. Por outro lado, a história também mostra que nós estamos ainda muito distantes de elaborarmos para as coisas – isto é, para as questões de interesse – um espaço visual aberto ao público que seja, mesmo que remotamente, tão rico, tão sistemático e tão fácil de interagir quanto os espaços virtuais para objetos concebidos como questões de fato elaborados há mais de quatrocentos anos. Enquanto existir essa lacuna, não haverá como o design tirar o modernismo do seu beco sem saída histórico. Imaginar que uma ecologia política da magnitude prevista pelos especialistas pode ser levada a cabo sem ferramentas inovadoras é um convite ao desastre. Inovações serão absolutamente necessárias se quisermos representar adequadamente as naturezas conflituosas de todas as coisas que pretendemos elaborar através do design (eu uso o verbo “representar” aqui em sentido amplo, incluindo técnicas de representação artísticas, científicas e políticas).

Eis a questão que quero colocar aos designers: onde estão as ferramentas de visualização que permitirão representar a natureza contraditória e controversa das questões de interesse? É um erro comum (e bastante pós-moderno) acreditar que esse objetivo terá sido alcançado tão logo a visão modernista “linear”, “objetificada” e “reificada” se despedace em pontos de vista múltiplos e em agrupamentos transitórios e heterogêneos. Entretanto, derrubar a tirania do ponto de vista moderno não levará a lugar nenhum, uma vez que jamais fomos modernos. A crítica, a desconstrução e o iconoclasmo, uma vez mais, não darão fim à busca por um design alternativo. São necessárias ferramentas que capturem aquelas práticas que sempre foram encobertas nas inovações modernistas: objetos sempre foram projetos; questões de fato sempre foram questões de interesse. As ferramentas de que necessitamos para compreender essas práticas ocultas nos ensinarão tanto quanto a antiga estética das questões de fato – e ainda mais. Vale deixar claro – eu não estou defendendo outro CAD design para Prometeu. O que peço é um meio para agrupar as coisas através do desenho – deuses, não humanos e mortais inclusos. Por que seria esta uma tarefa impossível? Por que o poderoso vocabulário visual desenvolvido nas gerações passadas de artistas, engenheiros, designers, filósofos, artesãos e ativistas das questões de fato não pode ser elaborado (hesito em dizer reestilizado) para as questões de interesse?

 

Referência da publicação original em inglês:

“A Cautious Prometheus? A Few Steps Toward a Philosophy of Design (With Special Attention to Peter Sloterdijk)”. In: Hackne, F.; Glynne, J.; Minto, V. (eds.). Proceedings of the 2008 Annual International Conference of the Design History Society. Falmouth, 3-6 September 2009, e-books, Universal Publishers, pp. 2-10.

 

Notas

(1) N.T. O termo design, em inglês, também existe como verbo. Normalmente, verter o verbo to design pelo verbo projetar resolveria a questão. Entretanto, como ficará claro adiante, Latour utiliza o próprio termo design – tanto em sua forma de substantivo quanto de verbo – como base de sua reflexão, e o opõe a termos de conotação modernista, tais como projetar, construir etc. Isso gera dois problemas: 1. A tradução por qualquer termo que não por “designar”, que gera confusão evidente com o verbo “designar” (que possui outro significado em português), torna problemática a referência ao termo design. 2. O termo escolhido teria que possuir as características que Latour percebe no termo “design”. O termo em português que melhor traduz to design e que possui as características em questão nos parece ser “elaborar”. Para resolver o problema 1, quando há, após o verbo, referência direta ao design, utilizamos a forma “elaborar através do design”.

(2) N.T. No original, matters of fact e matters of concern. Essas duas expressões aparecem diversas vezes ao longo do texto, bem como em outros textos do autor. O termo matter, em inglês, pode designar tanto uma questão ou problema quanto matéria. As expressões matters of fact e matters of concern jogam com essas significações, pois a matéria, vista como questão de fato, é algo objetivo, dado pela natureza e exterior ao humano, enquanto a matéria, vista como questão de interesse, é algo que diz respeito ao humano e a seus “interesses”.

(3) N.T. “on how to draw things together”, no original (destaque no original). O autor joga com o duplo sentido de draw. To draw things together pode significar simplesmente agrupar as coisas, ou então dar sentido às coisas, agrupando elementos díspares de modo a formar um conjunto coerente. Entretanto, o itálico no draw sugere o sentido de agrupar as coisas através do desenho.

(4) N.T. A tradução literal da expressão seria “depois de mim, o dilúvio”. Trata-se de uma expressão francesa, que parece ter sido originalmente proferida por Luís XV, e que carrega a ideia de um descaso com os rumos futuros e com as consequências de longo prazo das próprias ações.

(5) N.T. Art and craft no original.

(6) LATOUR, B. “From Realpolitik to Dingpolitik: how to make things public – an introduction”. In: LATOUR, B.; WEIBEL, P. Making things public: atmospheres of democracy. Cambridge: MIT Press, 2005, pp. 1-31. Disponível em: < http://www.bruno-latour.fr/node/208>. Acesso em: 06 nov. 2013.

(7) N.T. Um dos filósofos que mais famosamente refletiu sobre o termo “coisa” foi Heidegger, a quem Latour faz referência em seu texto citado na nota anterior. O texto do filósofo ao qual ele faz referência é a transcrição de uma conferência proferida em 1950 e cujo título na tradução em português é A coisa. Nesse texto, Heidegger escreve: “Não há dúvida que a palavra thing do antigo alto-alemão designa a reunião convocada, para tratar de um assunto em questão, de uma questão em disputa” (HEIDEGGER, M. “A coisa”. In: Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 152). Outras partes do texto nos ajudam a pensar a etimologia portuguesa de “coisa”, que provém de “causa”: “a palavra romana res evoca o que toca e concerne o homem, diz o caso, a questão, o que está em causa. Por isso, os romanos usavam também, no mesmo sentido, a palavra causa” (ibidem, p. 152). “Da palavra latina que melhor corresponde a res, isto é, da palavra causa, no sentido de caso e assunto de interesse geral, derivam-se os termos neolatinos: la cosa, a coisa, o francês la chose” (ibidem, p. 153).

(8) N.T. A expressão “calor branco da tecnologia” foi usada pelo ex-primeiro ministro britânico Harold Wilson em 1963 durante um famoso discurso sobre as consequências das mudanças científicas e tecnológicas. Ele afirmava que a Inglaterra que seria construída no calor branco da revolução tecnocientífica não seria lugar para práticas restritivas ou medidas ultrapassadas.

(9) SLOTERDIJK, P. “Foreword to the theory of spheres”. In: OHANIAN, M.; ROYOUX, J. C. (Eds.). Cosmograms. New York: Lukas and Sternberg, 2005. p. 223-241.

(10) LATOUR, B. What is the style of matters of concern? Two lectures on empirical philosophy. Disponível em: . Acesso em: 19 nov. 2013.

(11) N.T. Ver nota 2.

(12) N.T. Trata-se de uma passagem da Carta aos Romanos (Rm, 7: 19) que Latour cita livremente. Na versão Almeida corrigida e fiel da Bíblia, temos: “Porque não faço o bem que quero, mas o mal que nãoquero esse faço".

(13) N.T. Em setembro de 2013, uma matéria do New York Times mostra que o exemplo utilizado por Latour continua a ser objeto de controvérsias. De acordo com a matéria, os lobos foram extintos nos Alpes por volta da década de 30. Com o apoio do governo, pastores e fazendeiros teriam caçado os animais até que eles desaparecessem. Por volta de 1992, alguns lobos migraram da Itália para os Alpes e, sendo então espécie protegida, proliferaram em poucos anos. Os ambientalistas festejaram a volta dessa espécie ao seu antigo habitat natural. Entretanto, a proliferação dos lobos têm prejudicado a criação de ovelhas na região, que mantém o modo de criação tradicional. Assim, o projeto ambientalista de restituir a população de lobos entra em conflito direto com o projeto, também apoiado pelos ambientalistas, da manutenção de uma forma natural e ecologicamente correta de criação de animais e de produção sustentável.

Sobre o Autor(a):

Bruno Latour é antropólogo, sociólogo e filósofo francês. Lecionou na da École nationale supérieure des mines de Paris (Mines ParisTech) e na Universidade da Califórnia em San Diego. Entre suas principais obras, destaca-se Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica (1994).

 


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