Ano: I Número: 4
ISSN: 1983-005X
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O Novo
Henry van de Velde, 1929
Tradutor(a):Gilberto Paim

O novo que se manifestou na última década do século passado, primeiramente nas artes aplicadas, e depois na arquitetura, foi provocado pela repulsão violenta e irresistível contra a feiúra.

Nunca em nenhuma outra época, sob qualquer estilo, o gosto do público foi tão insultado como na segunda metade do século XIX. Essa feiúra foi o resultado da repetição constante, cada vez menos inteligente, cada vez menos perfeita, de modelos de estilos antigos, e da falta absoluta de controle tanto sobre a relação entre a forma destes modelos e a finalidade prática à qual se destinavam, quanto sobre o sentido dos ornamentos que os sobrecarregavam.

A ação empreendida pelos grandes apóstolos Ruskin e Morris faliu. Seus esforços não obtiveram outro resultado senão a emoção provocada pelo discurso inflamado do primeiro e o respeito - que partilhamos ainda hoje – pelas obras de excepcional perfeição do segundo.

Não podia ter sido de outro modo. As fulgurantes diatribes de Ruskin contra a invasão da feiúra assim como as criações admiráveis de William Morris em todos os ramos das artes aplicadas eram anacrônicas!

Ambos escolheram a missão de ressuscitar o estilo gótico. Ora, estávamos no limiar do século XX. Transformações radicais haviam sacudido a economia política e social pela introdução da máquina e criação da fábrica, estes dois pilares da indústria e do regime novo de produção que sobrepujaram os artesãos e os ofícios artísticos.

Pensar em ressuscitar o estilo gótico no limiar do século XX!

Hoje nos perguntamos como dois homens de inteligência excepcional puderam se entregar a tal ilusão e partilhá-la com tantos discípulos.

Mas esta ilusão se explica. A revelação do que o estilo gótico realmente é – então repudiado, renegado desde que cedeu lugar aos estilos do Renascimento – ou seja, um dos apogeus mais sublimes, uma das concepções mais radicais e audaciosas da arquitetura, era ainda recente quando Ruskin publicou em As Pedras de Veneza, o famoso capítulo sobre o estilo gótico a respeito do qual Morris dizia que "foi no dia em que ele e seus amigos o leram que surgiu para eles uma nova orientação do mundo!"

Admitir que uma "nova" orientação do pensamento, no limiar do século XX, pudesse se dirigir ao passado, significava nada ter compreendido sobre as forças em ação, sobre a tensão que provocou uma imensa transformação em todos os domínios da atividade humana, como nenhum século anterior havia conhecido.

A atitude de Ruskin e W. Morris seria incompreensível se perdêssemos de vista o que acabo de dizer sobre a revelação do gótico, e o apoio moral que esta revelação trouxe tanto ao "conservadorismo" de Ruskin e ao socialismo de W. Morris!

O primeiro via no retorno ao gótico e às condições de produção da Idade Média o único modo de interromper a invasão da máquina e da indústria, da fábrica e suas altas chaminés, das estradas de ferro, enquanto o segundo exaltava na Idade Média a dignidade do trabalho artesanal, que ele quis reconquistar a todo preço, mesmo ao preço de uma revolução.

No continente, mais especialmente na Bélgica, o movimento que começou na Inglaterra foi orientado para o futuro e em direção a um objetivo mais ousado e aventureiro: o estilo novo.

Isso não aconteceu sem algumas intervenções decisivas

Um grupo de inovadores ingleses, nenhum deles especialmente genial, realizou o milagre.

Aparentemente nenhum dos artistas ou artesãos do novo grupo "Art and Crafts" partilhou a ilusão de Ruskin e Morris sobre o retorno ao estilo gótico. Nem o arquiteto Baillie Scott, ou o arquiteto-decorador Voysey, o ilustrador Walter Crane, o joalheiro Ashbee, o construtor de luminárias elétricas Benson ou o vidreiro Powell. Eles partilharam um programa mais modesto: a criação de uma arquitetura, de um mobiliário e de objetos muito simples, concebidos saudavelmente longe da imitação dos estilos.

A repercussão desse programa foi considerável.

Sem grandes gestos ou exclamações, o grupo Arts and Crafts derrubou, por volta de 1894, as portas pelas quais escaparam – assim que as criações do grupo inglês foram conhecidas no continente – os indivíduos que, tomados pelo frenesi da liberdade reconquistada e pela alegria por terem se livrado do pesadelo da imitação dos estilos, não levaram em consideração, durante algum tempo, nada que lembrasse disciplina, medida, ou qualquer coisa que parecesse cercear a sua liberdade.

O que quer que fosse seria melhor, de fato, do que o maldito passado de feiúra do qual havíamos escapado.

O que experimentamos em torno de 1894, não posso comparar a nada senão à liberdade que sentimos diante dos primeiros sinais da primavera.

A primavera surpreende sempre. Sentimos, a cada vez que ela ressuscita, o alívio por termos vencido uma apatia morna, por nos termos nos livrado do fardo que cada inverno nos impõe.

E nós tínhamos sofrido um longo e trágico inverno, um inverno interminável durante o qual acreditávamos ter morrido do desgosto decorrente da feiúra de tudo o que víamos.

Depois disso, poderíamos ter ficado com essas coisas simples, charmosas e saudavelmente concebidas; mas seria uma limitação. Muitas forças latentes de criação precisavam se manifestar. E, na maioria dos países, surgiram artistas que reivindicaram o direito de criar o novo, ou seja, formas e ornamentos livres da imitação de qualquer estilo. Forem eles na Bélgica: Serrurier em primeiro lugar, depois os arquitetos Hanckar, Horta, van Rijsselbergue e eu; na Holanda, Berlage; Otto Wagner e seus discípulos Olbrich e Hoffmann na Áustria; na Alemanha: Obrist, Endell, Riemerschmidt e Pankock; depois deles Behrens e outros. Plumet, Selmersheim, Majorelle na França... Saarinen na Finlândia, e outros em diferentes países.

No final do século passado, houve uma legião de pioneiros de um estilo novo. Cada um deles foi desprezado e combatido em sua pátria. Alguns foram levados pelas circunstâncias do destino a abandonar o seu país para defender uma idéia.

Apesar de tudo o que a vida me reservou em seguida, nunca desejei que as coisas tivessem acontecido de outro modo. Minha vida foi rica demais: quedas e vitórias; rica demais em lembranças fascinantes para que eu me mostre ingrato com o destino.

Sou grato ao destino por ter associado intimamente a minha vida a esta correção moral e estética que, desde 1894, se apoiou no "novo". Nascido da convicção de um fim em si mesmo, este novo foi inicialmente pretensioso, apaixonado por si mesmo. Isso levou a extravagâncias, desregramentos e supervalorizações que, hoje, com 30 anos de distância, fazem pensar num carnaval, numa orgia de individualismo.

Mas em tais condições, alguns indivíduos envelhecem mais rápido que outros.

E, num acesso súbito de clarividência, compreendemos que o movimento em favor do estilo novo tinha uma bandeira, mas não tinha um programa; que mostrávamos uma bandeira ilusória num cortejo para o qual os fabricantes, os "negociantes" e o "público" forneciam a música.

Sabíamos muito bem que os fabricantes estavam interessados sobretudo na "novidade" das formas e dos ornamentos, no ineditismo das nossas invenções. Todas as criações que se distinguiam pela novidade no domínio da arquitetura e das artes industriais, eram assinaladas, barulhentamente discutidas e louvadas sem medidas.

Assim, à primeira hostilidade se sucedeu um encorajamento sem limites. Revistas de "arte nova" surgiram aos montes, rivalizando apressadamente entre si na descoberta de alguma novidade sensacional ou de algum gênio portador do novo.

Havia neste entusiasmo pernicioso, motivo suficiente para que todos perdêssemos a cabeça, para esvaziar o esforço tenaz de alguns dentre nós, dentre os que buscavam incessantemente descobrir a fórmula que daria ao nosso movimento o seu sentido verdadeiro e o seu programa.

Enquanto não conseguíssemos dissipar o mal entendido que havia entre nós e esses fabricantes, entre os comerciantes e o público, nos sentiríamos ameaçados. Nós prevíamos o risco de que os nossos esforços nos levassem ao contrário do que queríamos. Era preciso se explicar o mais rapidamente possível.

Tirar de todos aqueles que só nos viam como "portadores do novo", a ilusão de que depois desse novo nós lhes traríamos um outro; que depois de termos conquistado o lugar em nome do direito da nossa época de possuir um estilo, nós cederíamos o lugar a um outro "novo" e a nossa época perderia o estilo que nasceu da transformação radical de uma mentalidade que teria reconquistado o seu vigor moribundo, graças à sua fé no esforço da inteligência, do raciocínio e da aplicação da ciência adquirida.

Em minhas "Declarações de princípios", capítulo do meu livro Sermões para os laicos de 1911, me detive num único princípio: a concepção lógica aplicada à criação de toda a forma, à invenção de toda construção. Hoje, quase trinta anos depois, o que poderia acrescentar?

Viollet-le-Duc, muito antes de nós, expôs o problema do mesmo modo. Mas a sua voz não foi ouvida. Não escreveu ele, porém, sobre a concepção racional e sobre a importância de uma volta à lógica das palavras de emocionante penetração e de valor eterno?

Mas, naquele momento, o desgosto ainda não havia agido suficientemente! O público continuava a se deleitar com a insanidade das formas irreconhecíveis e decoração sentimental e ultrapassada. Nem Viollet-le-Duc, nem Ruskin, nem mesmo o revolucionário Morris contribuíram suficientemente para provocar o ato de revolta e de desespero que teria precipitado os acontecimentos. Eles cultivaram a esperança de que as coisas poderiam ser resolvidas suavemente e que o retorno à Beleza se seguiria naturalmente.

O que diferencia o movimento provocado no continente ao final do século passado daquele que foi iniciado por Ruskin e Morris, vinte e cinco anos antes, é que os fanáticos do princípio de concepção racional, movidos pela idéia da necessidade do aspecto verídico e moral de todas as coisas, questionamos − sem fraqueza − todas as nossas opiniões sobre os estilos, formas e ornamentos, e proclamamos após este exame que daríamos as costas ao passado. O que não excluiu desde então, que refaríamos os laços do presente com o passado, e que redescobriríamos a fonte de uma grande tradição.

Após termos declarado formalmente que a idéia de um retorno à concepção racional está no centro da nossa ação e que abandonaríamos todo outro meio de concepção e criação no domínio da arquitetura e das artes industriais, nos nós voltamos bruscamente contra a novidade e contra aqueles que, a qualquer preço, exigiam o novo.

Nada mais há a opor contra a concepção lógica de uma construção, de um edifício, à forma racional de um objeto.

O que nos resta a fazer? Repudiar todas as formas pervertidas, desmascarar toda a falta de sentido, todas as aberrações e reencontrar as formas essenciais da casa, da mesa, da cadeira, da cama e todos os objetos indispensáveis à nossa vida cotidiana.

Ao fazer isso, descartamos todas as novidades recentes e antigas e reatamos com a tradição: a tradição primordial da concepção; da forma adequada, pura e eterna! Quando havíamos nos interrogado sobre o "novo", sobre a lei que o cria e o princípio que o justifica?

Até então, havíamos compreendido imperfeitamente que o meio ao qual recorremos para criar o novo, não era novo.

Pois como se explicaria a novidade daquilo que criamos, e por que tudo isso seria tão diferente daquilo que o público havia até então idolatrado, e que nos havia inspirado tanto horror, se não dispuséssemos de um meio desconhecido dos nossos predecessores para lutar contra a feiúra!

Se eles tivessem conhecido um outro meio, teriam pensado em recorrer à idéia de uma "volta ao gótico" e às preces patéticas visando um retorno à beleza que ficaram sem ressonância até que uma nova fórmula definisse o que é a beleza?

Ora desde esse momento concebemos um novo que iria durar, enquanto o público esperava de nós "um novo" que se renovaria constantemente.

(...)

Compreendam que aqueles que tudo arriscaram para realizar um ideal se assustam subitamente com a possibilidade de que a esplêndida realização do "novo" seja anulada por aqueles que querem "fazer o novo" a qualquer preço e por aqueles que exigem "sempre o novo".

Chegou a hora de gritar para esses profissionais da inovação que a "lição do novo" nos vem do âmago da humanidade, que a sua fonte está na reflexão, na dedução, na busca da solução mais radical e ao mesmo tempo mais satisfatória da forma e da construção em relação à utilização específica daquilo que criamos. O futuro do novo só está assegurado enquanto este se alimentar da fonte eterna por intermédio do meio eterno. Só criamos e encontramos o novo no plano da eternidade.

Tragam-nos o "novo" que vem de muito longe; se for muito antigo, saberemos reconhecê-lo e não deixaremos de aclamá-lo.

Infelizmente, porém, enquanto o estilo, nascido da aplicação de um princípio e de uma crença que se espalharam por todo o universo, não estiver livre de todas as lembranças dos estilos históricos, um "falso novo" pode relançar à moda, sob uma aparência habilmente renovada, os elementos decorativos sem sentido ou justificativa, dos quais nos livramos progressivamente graças à observação de uma disciplina que só frutificou depois de 40 anos.

(... )

A ameaça da novidade é constante. Ela prolonga não apenas indefinidamente a decadência do gosto, mas desmoraliza todos aqueles que de perto ou longe se relacionam com a criação, a fabricação e a venda da "novidade": o fabricante que, em vez de consagrar todos os seus esforços na qualidade de um produto por meio das correções sucessivas que o levariam à perfeição, só pode pensar na busca de uma novidade que, se na próxima feira, parecer "menos nova" do que a do seu concorrente, provocaria senão a sua ruína, ao menos perdas consideráveis. A maldição da novidade não pesa menos sobre os desenhistas e gerentes de produção assustados, uns pelo medo de não fornecer ao fabricante a novidade que triunfará sobre as outras, e os outros de não produzi-la suficientemente rápido para que avance sobre o mercado do concorrente; vendedores e viajantes temem não conseguir vendê-la a um número suficientemente grande de clientes.

 Texto extraído do ensaio "Le Nouveau".

VAN DE VELDE, Henry. Déblaiement de l´art, suivi de La Triple Offense à la Beauté, Le Nouveau, Max Elskamp, La Voie Sacrée, La Colonne. Archives d´Architecture Moderne, Pierre Mardaga Editeur, Bruxelas, 1979. ( www.mardaga.be)

Mais informações: www.henry-van-de-velde.com

Sobre o Autor(a):

O pintor, designer, arquiteto e profícuo escritor belga Henry Van de Velde (1863-1957) foi um dos mais importantes pioneiros e propagandistas do movimento moderno. As suas criações como designer lhe proporcionaram notoriedade internacional depois de expostas em 1896 na galeria Art Nouveau, do marchand Samuel Bing, em Paris. Em 1902 foi contratado como consultor de arte pelo Grão Duque de Saxe, que o nomeou diretor da Escola de Artes e Ofícios de Weimar. Em 1907 tornou-se membro da Deutscher Werkbund, a Associação Alemã dos Ofícios, na qual teve papel atuante. Na Alemanha dedicou-se progressivamente à arquitetura e ao ensino. Em suas cada vez mais raras realizações como designer afastou-se da complexidade orgânica do art nouveau em favor da simplicidade. Ao deixar a diretoria da Escola de Artes e Ofícios em 1914, indicou Walter Gropius como seu sucessor na instituição que, alguns anos mais tarde, foi transformada na Bauhaus.

Em O Novo, Henry van de Velde estabelece a distinção entre o novo estilo racional moderno que almeja a eternidade e as novidades que, lançadas continuamente pela indústria, ameaçam a sua consolidação. O ensaio-manifesto de 1929 formula claramente a pretensão modernista de eternidade. Embora possamos considerar ultrapassada a sua defesa do estilo novo como conclusão definitiva de uma história do design que então mal se esboçava, nos parece bastante evidente que a sedução das novidades aprimorou de modo exemplar ao longo do século XX a sua estratégia inibidora do espírito crítico. (GP)

 

 


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